OPINIÃO – Capitalismo, Ecologia e Corona Vírus: a questão está posta

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  • Por Silvio Kanner*

Pode o Corona Vírus ser um problema ao mesmo tempo social, econômico e ecológico? Certamente. Faz algum tempo, para ser mais exato desde a segunda metade do século XX, que a dinâmica econômica e social tem produzido e agravado desequilíbrios ecológicos, engendrando graves problemas para a existência humana.

A lógica do retorno monetário dos investimentos tem produzido zonas de elevado risco sanitário, na forma de cidades insustentáveis e, paradoxalmente, reduzido a saúde do meio ambiente no campo. O risco sanitário se manifesta na forma de superpopulação, ausência de barreiras ecológicas (corredores de árvores), redução de diversidade genética, fome e insegurança alimentar, residências e prédios de trabalho desenhados para “amontoar gente” e tudo isso sendo agravado pela concentração fundiária e um modelo predatório de agricultura e geração de energia.

Os autores que debatem as contradições capitalismo/natureza assinalaram até o momento algumas questões interligadas. A clássica falha metabólica, isto é, a desigualdade entre os tempos naturais e os tempos econômicos, que resulta da lógica imanente do capital de elevar a produtividade e reduzir seu ciclo de rotação para rentabilizar uma massa cada vez mais gigantesca, retirando da natureza uma quantidade cada vez maior de matéria num tempo cada ver mais curto; e a tecnologia produtiva ecologicamente nefasta em si mesma. No entanto, até hoje, nessa literatura, não tenho registro do risco de mudança de especialização patogênica. Num quadro de superpopulação e de estreita base genética, os microrganismos tendem a se especializar no sentido de parasitar a comunidade que está acima da capacidade de suporte do ecossistema: a natureza tem seus meios.

Lugar comum, mas precisa ser dito, é o efeito desigual dos desequilíbrios ecológicos segundo as classes sociais. O sistema que agride a natureza e a destrói também devasta o trabalho. O capital é como aquele deus pagão que toma seu vinho no crânio de suas vítimas, já diria Marx. Os trabalhadores não se beneficiam da riqueza gerada, mas são os primeiros a sentir os efeitos das crises ecológicas e os sentem sempre de forma mais aguda.

Nossa ilusão no progresso e na tecnologia nos cega, não nos permite ver que somos parte do meio natural e dependentes dele. Inclusive, parte da esquerda até os dias de hoje ainda pensa o fim do capitalismo como algo que vai “destravar” as forças produtivas no sentido do marxismo da segunda internacional, sem atinar que qualquer mudança no capitalismo hoje deve ter um claro sentido fundado nas teses de Walter Benjamim: travar o caminho para o abismo, para o qual caminhamos a passos largos.

Numa recente tese de doutoramento o professor Gilson Costa (UFPA/ICSA) chamou atenção para este “cyber” da natureza, para sua condição dialética no Antropoceno e afirmou claramente que o planeta não vai aceitar ser morto impunimente. “Se não dermos um jeito no capitalismo” ele diz, “a natureza dará”, mas isso implicaria uma hecatombe humana. A pandemia atual se aproxima muito dessa tese.

Toda essa discussão entre economia e isolamento social que se faz hoje na imprensa deveria se desdobrar numa reflexão mais profunda. Estamos lutando para salvar nossas vidas e com isso reduzindo a intervenção sobre a natureza e atenuando a loucura da razão econômica, como diria David Harvey. Exterminamos milhares de espécies nas últimas décadas, despejamos diariamente uma quantidade descomunal de lixo na atmosfera, litosfera e oceanos, e não discutimos o modelo de cidade e de agricultura. A China deslocou uma população duas vezes maior que a do Brasil do campo para a cidade nas últimas décadas apenas para alimentar sua máquina de lucros. O Brasil sempre se negou a fazer uma reforma agrária séria e a investir seriamente numa política de desenvolvimento regional que permitisse reduzir a concentração da sua população, além é claro da política ambiental desastrosa do governo atual e dos outros também. Porém, a cada redução do ritmo da produção a natureza ganha uma trégua.

Certamente a discussão que hoje fazemos está equivocada, não estamos abordando o problema certo. Não resta a menor dúvida de que o isolamento social é urgente e necessário, a despeito das sandices ditas pelo atual presidente do Brasil. A grande questão, entretanto, é que as condições que produziram a COVID-19 não estão solucionadas e sequer estão sendo discutidas, são as condições da economia das Bolsas, das cidades mal organizadas e da agricultura suicida, são as condições do capitalismo.

O sociólogo alemão Ulrich Beck, em seu último livro antes de falecer, em 2015, intitulado “A metamorfose do mundo: novos conceitos para uma nova realidade” deixou duas grandes e importantes pistas. A primeira é que temos que repensar tudo, as categorias que usamos até agora se revelaram um engano e a segunda é que pensamos, exatamente isso, a humidade pensa, somos seres reflexivos, e não precisamos por isso, necessariamente, caminhar para o abismo.

Talvez a disjuntiva Lucro/Vida esteja colocada agora aguda e definitivamente, talvez esteja na hora da ecologia estar à frente da economia, ou se fundirem numa economia ecológica. Nossa esperança repousa na possibilidade do velho Marx estar certo: a humanidade não se coloca problemas para os quais as condições de sua solução não estejam dadas ou em vias de aparecer. Mas uma coisa depende de nós, temos que nos colocar os problemas certos.

*O autor é Engenheiro Agrônomo, Doutorando em Ciências Sociais e dirigente da Associação dos Empregados do BASA.

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