‘A falta de prestígio da História é histórica no Brasil’

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Para historiadora, responsabilidade de incêndio no Museu Nacional é de toda a sociedade brasileira, que não valoriza sua memória

A falta de interesse pela preservação da memória no Brasil, explícita no incêndio que atingiu o Museu Nacional na noite do domingo 2, é uma característica histórica e cultural da sociedade brasileira.

A analise é da historiadora, pesquisadora e professora Mary del Priore, que lista, entre tanto motivos, a falta de investimentos das autoridades públicas na manutenção e valorização do patrimônio, os maus professores de histórias que não transmitem a paixão sobre o passado para seus alunos, os pais que preferem levar seus filhos ao shopping e não a um museu.

A responsabilidade, diz a professora, é de toda a sociedade, que agora se sensibiliza ao ver um patrimônio depredado. “Todos nós temos que jogar as cinzas do Museu na nossa cabeça. Foi culpa nossa”, disse a CartaCapital nesta segunda-feira 3.

“Nunca foi valorizado no Brasil o nosso passado, a nossa memória, a disciplina histórica. As faculdades de história, por exemplo, só começam no País no século XX. A falta de prestígio da história é histórica”, afirma.

O edifício que abriga o Museu Nacional e mais de 20 milhões de itens, agora carbonizados, foi palco de momentos cruciais na história do País. Para citar apenas dois, nele foi assinada a declaração da Independência do Brasil e, mais tarde, abrigou a reunião dos republicanos que definiram a primeira Constituição, de 1891. O lugar também guardam as histórias do dia-a-dia de dom João VI, Pedro I e Pedro II

Ainda que tamanho descaso esteja tão enraizada na cultura, Del Priore vê espaço para mudanças. Leia a entrevista a seguir.

Mary del Priore afirma que o descaso com a memória do País é culturalCartaCapital: Qual a dimensão do incêndio do Museu Nacional na sociedade?
Mary Del Priori: Venho batendo muito tempo nessa falta de total interesse pela preservação da memória, que não é uma característica do Rio, é do Brasil todo. A gente está cansado de saber que em Minas Gerais, por exemplo, destroem casarões do século XVIII para fazer estacionamento, fazer supermercado. Mas no Rio de Janeiro eu diria que isso é mais grave, porque obviamente temos uma política feita por canalhas, por ladrões. Se você imaginar que foi gasto fortunas para fazer o Museu do Amanhã quando havia necessidade de restaurar uma série de salas do Museu Nacional, aí você tem uma dimensão de que a preservação dos bens privados é sempre melhor do que dos públicos.

Nós tivemos antecedentes: o incêndio do MAM [em 1978], que ficou na história; o incêndio da Capela Imperial, que não faz tanto tempo assim. Além disso, temos outros edifícios de patrimônio, como a Santa Casa de Misericórdia, que é um dos edifícios mais antigos da cidade e está totalmente abandonado. A primeira igreja positivista do Brasil, que está sem telhado… Enfim, é a história do descaso não só das autoridades que preferem meter a mão do bolso para roubar, mas sobretudo do cidadão que passa em frente a um monumento, vê o monumento pichado e não se sensibiliza; de roubarem o busto de bronze da praça e não se sensibilizar; de pais que levam os filhos para o shopping no final de semana em vez de fazer uma visita ao Museu. De professores de História – e falo como professora que eu sou – que não transmitem na sala de aula a paixão pela História, pelo passado, pela memória. Tudo isso faz um combustível bastante ruim. Não temos como alimentar a nossa paixão pelo passado.

CC: Qual era a importância histórica do edifício que abrigava o Museu Nacional?
MP: O caso do Museu Nacional é dramático porque ele é um lugar de memória da história do Império brasileiro. Ele é dado como presente do dia 1º de janeiro de 1819 pelo comerciante Elias Antonio Lopes a dom João, que na época é regente. Mas ele não faz isso gratuitamente. Antonio Lopes, depois, vai receber uma série de títulos: se torna moço-fidalgo da Casa Real, alcaide-mor, também recebe dinheiro.

A partir daí esse espaço vai ter uma função importantíssima. É ali que dom João VI vai receber seus súditos, vai se aproximar de seus súditos brasileiros. Eles vão lá no beija-mão, pedir favores, conhecer aquele que depois será o futuro monarca quando ele ainda é regente. As primeiras transformações arquitetônicas vão sendo feitas também para o casamento do dom Pedro com a Leopoldina, que vai ter nove filhos. É o local onde ela morreu. Na janela desse palácio que dom Pedro vai olhar a casa da marquesa de Santos e vigiar sua amante. É nessa casa que ele vai mandar construir um chafariz enorme, que fosse visto da sala de jantar e também de seus aposentos.

As maiores reformas são feitas em 1866 pelo dom Pedro II. Ele vai reformar os jardins e fazer uma alameda de sapucaia. Também vai repartir o lago em dois para dar um acesso mais imperial, fazendo uma estrada para os políticos que agora se reúnem com o imperador, na casa dele. É nesses jardins que brincaram a princesa Isabel e a princesa Leopoldina, no mesmo lugar que brincaram suas tias, a princesa Francisca, as princesas Paula e Januaria, catando conchas e fazendo, com cacos de louça, a ornamentação do chamado Jardins das Princesas.

Por tudo isso, é um espaço que não só tem muito da grande história – porque ali que vai ser assinada a declaração da Independência e depois, mais tarde, a reunião dos republicanos para definirem nossa primeira Constituição de 1891 -, mas também é o lugar da pequena história. Isso que é bacana.

Com o incêndio, também perdemos uma loucura de patrimônio. Inclusive o patrimônio que a Dona Tereza Cristina, quando casou com o imperador Dom Pedro II, trouxe que foram os famosos afrescos do Templo de Ísis, que são comentados até por Lord Byron em sua poesia.

CCÉ possível identificar os responsáveis neste momento?
MP: Acho fácil a gente achar culpados. Espero realmente um laudo para poder dizer o que aconteceu. Dizer que a culpa é do governo federal e que a Cultura sangra no Brasil é fácil, porque não há dinheiro nem para a Saúde, nem para a Segurança. Para trazer dinheiro para a Cultura é preciso fazer reformas, e ninguém quer fazer reformas.

Atribuir [a culpa] só as autoridades é muito fácil. Eu conheço muito diretores de museus, todos eles se matam de trabalhar para conseguir verbas. Há um desinteresse profundo da sociedade civil, mesmo das pessoas que podem, e estou falando aqui nos empresários… Tirando a Fundação Roberto Marinho e o Carlos Lessa, quando presidiu o BNDES, a gente nunca viu dinheiro ser dado para patrimônio.

Nos países civilizados você pode contribuir para o museu com um centavo se você quiser para restauração de um quadro, para a restauração de uma sala. Aqui no Brasil falta a participação da comunidade, da vizinhança, das organizações não-governamentais e digo: dos professores, dos historiadores de todos nós, do cidadão comum.

CC: A culpa é de todos?
MP: Eu acho. Todos nós temos que jogar as cinzas do Museu na nossa cabeça. Foi culpa nossa.

CC: O Museu está sob os cuidados da esfera federal
MP: O Ministério da Cultura não tem dinheiro e só terá dinheiro se forem feitas as reformas neste País. E antes da Cultura, vem a saúde dos brasileiros que é muito mais importante, obviamente também a questão da segurança. Para nós termos recursos do governo federal é preciso gastar…

CC: Ainda que não se saiba as causas que provocaram o incêndio, era um caso de fazer como o que foi feito no Museu do Ipiranga, em São Paulo? Fechar as portas para reforma?
MP: Sim. E até de chamar a comunidade para participar da restauração com doações, com movimentos. Sem dúvida, teria sido uma solução. A questão toda é que o Museu Nacional recebe uma infinidade. Ele tem toda parte de ciências naturais dentro do museu e ele tem milhares de pesquisadores que fazem tese em suas dependências.

CC: Você fez críticas ao ensino de História na escolas. O que poderia ser feito para melhorar?
MP: O professor tem que transmitir compaixão à matéria que ele está lecionando. A História é uma matéria que necessita uma forma narrativa, um entusiasmo, passeios e visitas a museus e locais históricos. É preciso transmitir esse amor pela História aos alunos.

Eu digo sempre: o mau professor de história vai fazer um cidadão descomprometido, um cidadão inconsciente. É preciso que o professor de história tenha a consciência também do papel que ele tem na transmissão do conhecimento. Cabe a cada um ser criativo. Vamos inventar maneiras de transmitir o conhecimento histórico de forma séria, porém apaixonado.

CC: Acredita que o incêndio pode ser um divisor de águas nessas questões?
MP: Não acho que seja um divisor de águas. O brasileiro precisa ter mais consideração pelo seu passado, mais respeito pelo seu passado. Infelizmente a televisão transformam os personagens históricos em caricatura, isso também não ajuda. Mas eu acho que isso tem que vir realmente de baixo, não de cima. Porque só de cima e com dinheiro não vai resolver o problema, os museus vão continuar vazios. É preciso que as pessoas entendam que é indo ao museu que elas vão adquirir a cidadania, a memória, a história, o passado, valorizar o seu país. É muito importante que isso venha de baixo.

CC: A que se deve essa desvalorização da memória no País?
MP: Sempre houve [essa desvalorização]. Nos anos 40, Gilberto Freyre e José Mariano fizeram uma campanha enorme para que houvesse a preservação da memória no momento em estava ocorrendo uma grande renovação em muitos bairros das grandes capitais brasileiras. Naquela ocasião começava-se a substituir bairros inteiros de casas e moradias antigas. Muitos bairros coloniais no Rio de Janeiro, Salvador e Recife foram sendo transformados em bairros de cimento, em um edifício colado ao outro.

Eu, particularmente, acho que o brasileiro gosta do novo pelo novo. Eles querem sempre o novo. Então o velho tem que ser banido, tem que ser jogado fora, tem que ser destruído. Nunca foi valorizado no Brasil o nosso passado, a nossa memória, a disciplina histórica. As faculdades de história, por exemplo, só começam no País no século XX. A falta de prestígio da história é histórica.

CC: É um aspecto cultura?
MP: Sim, e econômico. O Brasil sempre foi um país paupérrimo e a essas de classe subalterna, entre ter uma casa antiga e que tivesse que ser preservada e dava muito trabalho, e uma casa nova, preferiam a última opção. A gente pode pensar nisso, no conforto, na chegada da água, da eletricidade e nessas transformações tecnológicas todas que fizeram com que essas pessoas que não tinham educação privilegiar o novo pelo novo.

CC: É possível mudar essa característica cultural do brasileiro?
MP: Todos nós somos criaturas de cultura, homens e mulheres, e a cultura é uma coisa transformável, não é fixa. Então eu acredito que é possível transformar com muita educação.

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