Outras Palavras debate, com Simone Deos e Luiz Gonzaga Belluzzo, proposta que multiplica investimento em serviços públicos e infraestrutura, articula agendas social e ambiental e permite, à esquerda, oferecer novo horizonte de transformações políticas
É POSSÍVEL UM GREEN NEW DEAL BRASILEIRO?
País tem enormes tarefas a realizar, nos serviços sociais e infraestrutura. E dezenas de milhões de pessoas precisam de ocupação digna. Uma novo projeto pode enfrentar os dois problemas
Com Simone Deos e Luiz Gonzaga Belluzzo
Em julho de 2019, Alexandria Ocasio-Cortez, então uma deputada recém-eleita e conhecida basicamente no bairro novaiorquino do Bronx, deu à ideia do Green New Deal status de tema político central. Convocada por jovens ativistas que haviam ocupado o gabinete de Nanci Pelosi, líder do Partido Democrata na Câmara, a ex-garçonete e filha de imigrantes portorriquenhos propôs algo que se chocava de frente com a agenda do presidente Donald Trump e a ortodoxia econômica. Num tempo em que o governo ampliava as isenções fiscais aos mais ricos, e o Federal Reserve emitia trilhões de dólares para distribuir aos grandes credores da dívida pública, ela sugeriu o contrário. Estes recursos, afirmou, deveriam ser reorientados à reduzir as desigualdades. Eles poderiam financiar uma vastíssima expansão dos serviços públicos e um imenso conjunto de obras públicas – destinados, paradoxalmente, a combater o aquecimento global e a dependência de combustíveis fósseis.
Em 5 de novembro último, o Congresso dos EUA aprovou uma pequena parte, modificada, da proposta de Alexandria. Um pacote de US$ 1,2 trilhão de investimentos públicos (equivalente a R$ 6,65 trilhões, ou a 90% de todo o PIB do Brasil) financiará a renovação da infraestrutura. A ênfase ambiental é nítida. Grande parte das obras viabilizadas é constituída ferrovias, transporte público urbano, ônibus escolares elétricos, redes de internet rápida, modernização dos sistemas públicos de abastecimento de água e saneamento. Um segundo pacote, ainda maior (US$ 1,75 trihão) sofre resistência mais tenaz dos conservadores, por tornar público o que hoje é oferecido por grandes corporações. Inclui a construção de centrais solares e eólicas, a universalização da escola pública para crianças, o estabelecimento de redes de cuidado para idosos, a garantia de acesso à moradia a preços acessíveis.
Os Estados Unidos, evidentemente, não se tornaram um país socialista – mas a agenda política mudou. O Green New Deal converteu-se em bandeira central de uma nova esquerda (os Socialistas Democráticos da América são, talvez, sua expressão mais forte), com presença crescente entre a opinião pública – especialmente entre a juventude. Ainda em 2018, uma sondagem do Instituto Gallup demonstrou que, na população entre 18 e 29 anos, 51% tinham uma visão positiva sobre o conceito de “socialismo”, enquanto apenas 45% viam o capitalismo da mesma forma.
A grande novidade do Green New Deal está em articular as agendas ambiental e social. Os manifestantes que convidaram Alexandria Ocasio-Cortez a acompanhá-los no protesto de 2019 eram integrantes muito jovens do Rainbow Movement, indignados com a devastação do planeta em que viverão. Mas como falar aos trabalhadores e aos mais pobres, obrigados a lutar a cada dia por sua subsistência, e para quem as lutas ambientais são luxos de uma classe média relativamente opulenta?
O Green New Deal acena a estas maiorias com a possibilidade de participarem ativamente da transição ecológica – e de compartilharem de seus frutos. A luta contra a catástrofe climática não significa reduzir sumariamente a atividade econômica. Alguns setores devem encolher – a produção de automóveis, a pesca industrial ou o número de viagens aéreas, por exemplo. Outras, porém, precisarão ser incentivadas. Como substituir o carro particular, se não houver redes de trem ou metrô? Como despoluir os rios, ou os litorais, sem um grande investimento em redes de esgoto e em seu tratamento? Como reduzir a extração de petróleo e carvão, sem construir novas usinas para aproveitar as fontes limpas de energia?
Na proposta original da nova esquerda dos EUA, o Green New Deal é acompanhado pela garantia, pelo Estado, do emprego digno para todos os que desejem trabalhar. Se há tanto esforço de construção a realizar, como não remunerar dignamente aqueles que se disporão a fazê-lo? Como não assegurar a eles direitos laborais e de sindicalização? Estas reflexões permitiram, aos Socialistas Democráticos da América e a outros grupos, construir uma agenda social que abre intenso diálogo com os trabalhadores. É, na mesma medida, rechaçada pelas corporações. Se o Estado garante emprego digno para todos que o desejem, quem irá se sujeitar a trabalho precário e mal pago?
A relevância desta agenda no Brasil salta aos olhos. A infraestrutura do país está em frangalhos – como mostram, por exemplo, os riscos de apagão e o apelo desesperado a termelétricas poluentes e caras. As redes de transporte coletivo limpo (ferrovias e metrôs, por exemplo) jamais chegaram a se espalhar pelo país. Apenas 40% da população têm acesso a redes de saneamento. Por isso mesmo, a maioria dos rios urbanos reduziram-se a esgoto em céu aberto. Há uma imensa dívida social com as periferias metropolitanas, onde moram mais de 50% dos brasileiros, privados de condições dignas de habitação, urbanização, arruamento, acesso a equipamentos culturais e esportivos ou a Educação e Saúde de excelência.
Ao mesmo tempo, metade dos brasileiros em idade de trabalho está desempregada, desocupada, desalentada ou subaproveitada. Um Green New Deal poderá gerar dezenas de milhões de ocupações, de todos os níveis. Para realizá-lo, não faltará dinheiro, como argumentou Ladislau Dowbor num diálogo anterior do Resgate. Mas será necessária muita força e consciência política. O debate público brasileiro recuou demais nos últimos anos. Ideias grotescas, como o “teto de gastos sociais” fixado na Constituição – algo não existente em nenhum outro país do mundo – foram impostas e perduram, ainda com pouca oposição.
Mudar este cenário, romper a intransigência dos que se beneficiam das políticas atuais, exige propor um horizonte político novo, capaz de despertar ação coletiva. O Green New Deal – que poderia ser abrasileirado como Virada Socioambiental – pode ser um instrumento muito poderoso para isso. Dois grandes economistas vão debater a hipótese, no âmbito do projeto Resgate. Simone Deos, professora da Unicamp, é também presidente do Conselho Científico e Técnico do Instituto por Finanças Funcionais ao Desenvolvimento – IFFD. Luiz Gonzaga Belluzzo, também professor da Unicamp, é um dos grandes economistas brasileiros dos últimos 50 anos e dispensa maiores apresentações. O diálogo entre eles, que nos orgulha promover, é uma contribuição de Outras Palavras para tirar o Brasil do inferno.