No paraíso tributário da mineração, falta dinheiro para fiscalizar barragens

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Em 2017, a Agência Nacional de Mineração (ANM) deixou de fiscalizar 73% das barragens que deveriam ter passado por monitoramento direto. O estado de Minas Gerais é um caso exemplar. Em 2018, o valor autorizado foi de apenas R$ 285 mil, já muito abaixo de valores dos anos anteriores

Uma notícia que chamou a atenção da população após o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, assim como depois do rompimento da Barragem 1, em Brumadinho, foi o número insuficiente de fiscais que os órgãos federais possuem para garantir a segurança das barragens de mineração no país. Segundo a imprensa, a Agência Nacional de Mineração (ANM) teria apenas 35 funcionários para fiscalizar todas as barragens do país.1 Essa falta de pessoal é usada como justificativa para o governo aceitar o “automonitoramento” realizado pelas mineradoras, apesar do evidente conflito de interesses inerente a esse processo, conforme explicitado no caso Vale-Tüv Süd. Entretanto, o sucateamento dos órgãos de controle não deve ser naturalizado. Ele é fruto de decisões políticas que consideraram como pouco importante a segurança da população que vive a jusante dessas barragens.

Apesar de o orçamento autorizado da ANM, antigo Departamento Nacional de Produção Mineral, ter aumentado depois do rompimento da barragem de Fundão, o valor efetivamente pago não se alterou significativamente entre 2015 e 2017, sendo, inclusive, reduzido em 2018. Em grande parte, isso foi promovido pela chamada austeridade fiscal, que impõe uma forte contenção de despesas primárias, tanto na formulação do orçamento, congelado pela Emenda Constitucional n. 95, de 2016, como na execução sistematicamente obstaculizada pela intensificação do contingenciamento dos recursos orçamentários autorizados. Como consequência, os órgãos responsáveis pelo monitoramento das barragens sofreram com falta de combustível para executar as fiscalizações, ou mesmo com insuficiência de recursos para pagar contas de luz. O resultado final foi que, em 2017, a ANM deixou de fiscalizar 73% das barragens que deveriam ter passado por monitoramento direto.

O estado de Minas Gerais é um caso exemplar. Em 2018, o valor autorizado foi de apenas R$ 285 mil, já muito abaixo de valores dos anos anteriores. Desse total, foram direcionados apenas R$ 163 mil para a fiscalização de áreas tituladas.2 De acordo com seu inventário estadual, Minas Gerais possui 435 barragens de mineração. Considerando que os recursos de fiscalização da ANM não se limitam às barragens, um cálculo muito conservador indicaria uma média de R$ 374 por barragem por ano. Esse valor irrisório explicita a não prioridade dada pelo governo federal à segurança das barragens.

Essa falta de vontade política está relacionada também com a baixa tributação do setor. O discurso convencional de que o Brasil tem uma carga tributária elevada, de 36% da renda, não vale para o setor de mineração. Este sempre contou com desonerações, incentivos e benefícios, que acabaram por tornar muito baixa a parcela da renda mineral apropriada pelo Estado, fragilizando sua capacidade de regular e fiscalizar a mineração. Assim, não fiscalizar mineradoras e não tributar suas operações são duas faces da mesma lógica de leniência do Estado para com o setor.

Caso emblemático da distorção tributária aplicada à mineração é a Lei Kandir, criada em 1996 e transformada em emenda constitucional em 2003. Por meio dela, os minérios exportados sem beneficiamento são isentos de pagamento do ICMS.

A Lei Kandir combina o pior de dois mundos. Por um lado, torna as indústrias brasileiras menos competitivas, subsidiando o beneficiamento dos bens naturais do Brasil em outros países. Por outro, impõe elevadas perdas de arrecadação para os estados que mais produzem e exportam minérios e que, portanto, deveriam ter maior capacidade orçamentária para fiscalizar as atividades extrativas. De acordo com José Afonso Bicalho, ex-secretário de Fazenda de Minas Gerais, as perdas anuais do estado decorrentes da Lei Kandir seriam da ordem R$ 6,7 bilhões/ano.3 A título de comparação, esse valor seria mais de mil vezes o orçamento de fiscalização mineral em áreas tituladas da ANM para todo o país (R$ 4,9 milhões em 2018).

Se a Lei Kandir é um caso emblemático de baixa tributação da mineração, ele está longe de ser o único. A grande mineração na Amazônia conta com fartos incentivos fiscais historicamente concedidos pela Sudam, que representam um perdão de 82,5% do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica.4 No caso da Vale, em 2017, a isenção concedida alcançou R$ 1,1 bilhão.

O conjunto de desonerações, isenções e benefícios fiscais tornam o Brasil um paraíso tributário para a grande mineração. Dados compilados para o período de 2002 a 2007 chegaram a uma carga tributária efetiva de 15% para a Vale, enquanto para a Companhia Siderúrgica Nacional o total foi de 30% – o dobro.5

Ainda em campanha, o presidente eleito reclamou que a China estava “comprando o Brasil”. Não surpreendentemente, a análise feita se mostrou equivocada. Na verdade, são grupos econômicos específicos, vinculados ao setor da mineração e do agronegócio, que vendem o Brasil a preço de ocasião. A baixa carga tributária permite que o minério de ferro da Vale chegue mais barato aos portos do Espírito Santo e do Maranhão do que às siderúrgicas nacionais. Assim, o Brasil subsidia a produção de aço chinês, contribuindo para que, posteriormente, produtos fabricados naquele país retornem a preços abaixo daqueles praticados pela indústria nacional.

Decisões políticas, como a opção de não tributar, têm colocado interesses específicos de curto prazo à frente das necessidades coletivas da sociedade, como proteção das pessoas e do meio ambiente. Enquanto essas escolhas continuarem sendo feitas, dificilmente teremos as mudanças necessárias para impedir novos desastres envolvendo barragens de mineração no Brasil. Dada a intensidade da influência dos setores corporativos sobre os formuladores de políticas públicas, somente a pressão constante da sociedade organizada parece ser capaz de garantir as mudanças necessárias para evitar outras tragédias como as que ocorreram em Mariana e Brumadinho.

 

*Alessandra Cardoso é economista e assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc); Bruno Milanez é professor da Universidade Federal de Juiz de Fora. Ambos integram o Comitê Nacional em Defesa dos Territórios frente à Mineração.

 

1 Roberta Jansen e Giovana Girardi, “Sem fiscais, governo usa laudos produzidos pelas próprias mineradoras”, Exame, 30 jan. 2019.

2 Alessandra Cardoso, “A escassez de verba de fiscalização também explica Brumadinho”, Nexo, 2 fev. 2019.

3 Audiência Pública: Lei Kandir e ressarcimento de perdas do ICMS. José Afonso Bicalho, secretário de Estado de Fazenda, maio 2017, Brasília, Câmara dos Deputados.

4 Inesc, “Amazônia: paraíso extrativista e tributário das transnacionais da mineração”, Nota Técnica n.186.

5 M. A. Henríquez e J. P. Resende, “Carga tributária incidente nas cadeias produtivas do ferro e do alumínio no Brasil”, Perspectiva Mineral, v.2, n.19, 2009.

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