O trabalho de manter à margem do debate público coisas como o totalitarismo e a intolerância trouxe, junto ao peso da responsabilidade, um considerável poder a ser exercido pela grande imprensa
Em 1939, 20 mil simpatizantes do nazismo se reuniram no Madison Square Garden. O calendário marcava 20 de fevereiro, e o prefeito de Nova York, Fiorello La Guardia, mobilizou cerca de 1,7 mil policiais para manter a ordem – no entorno do Garden, estima-se que cerca de 10 mil manifestantes tenham se reunido para protestar contra os nazistas. O evento, organizado pela German-American Bund, parou o centro da cidade.
A German-American Bund era liderada por Fritz Kuhn, um ativista alinhado ao projeto ideológico hitleriano. No comício, realizado por ocasião do aniversário de 207 anos de George Washington, a German-American Bund propunha uma celebração do que considerava como “verdadeiro americanismo”. Sob coros de “Heil Hitler” e emoldurado por um gigantesco estandarte com a imagem de Washington, Fritz Kuhn discursou contra a “imprensa dominada pelos judeus” e os “sindicatos comunistas”, atacou Roosevelt e o New Deal, e elaborou um rascunho do que seria sua América ideal: branca, nativista, anticomunista e antissemita.
Fundada em 1933, a German-American Bund chegou, em seu ápice, a somar cerca de 25 mil membros. Seus associados contavam com campos de treinamento e se dedicavam a ações de propaganda e demonstração pública, com a edição de panfletos e brochuras. Eles não estavam sozinhos. Em suas triangulações pela extrema direita, a organização mantinha uma relação bastante próxima com o Christian Front, grupo fundado pelo padre Charles Coughlin, um dos mais populares ativistas políticos dos Estados Unidos nos anos 1930. Fundador da Radio League of the Little Flower, Coughlin tinha, às vésperas da década de 1940, uma audiência estimada de 3,5 milhões de ouvintes, mantidos numa dieta regular de fascismo e antissemitismo. Coughlin foi um dos principais responsáveis pela publicação e divulgação dos Protocolos dos Sábios do Sião, uma falsificação sobre um complô imaginário de capitalistas judeus para controlar do mundo. Apesar de desmentidos e provados como falsos inúmeras vezes ao longo do século XX, os protocolos se tornaram uma espécie de pedra de toque do antissemitismo e são, ainda hoje, um documento a informar grupos da extrema direita.
Além da German-American Bund e do Christian Front, os Estados Unidos do entreguerras tinham em atividade outro tanto de grupos de direita radical, como a Silver Legion of America, os Crusader White Shirts, o American National-Socialist Party, além, é claro, da Ku Klux Klan. E, apesar de hipóteses da época associarem o fenômeno do totalitarismo europeu a traços culturais essencialmente continentais (como uma possível predisposição de alemães a doutrinas de ordem e força, por exemplo), o receio de pulsões fascistas contaminando o tecido social norte-americano era um medo muito real.
O flerte da direita dos Estados Unidos com o fascismo e o imaginário público despertado nisso mobilizaram o aparato de cultura do país. Em 1935, Sinclair Lewis, um dos mais populares autores do país, publicou um livro chamado It Can’t Happen Here (“Não vai acontecer aqui”). A obra, uma sátira sobre a ascensão do fascismo, narra a eleição de um radical populista para a presidência dos Estados Unidos, com a transição do país ao totalitarismo, numa espiral de caos. A publicação tinha um alvo claro: articular, na esfera pública, os medos suscitados pelos planos presidenciais de Huey Long, um ex-governador e senador democrata eleito pelo estado da Louisiana. Comunicador habilidoso, Long, que tinha como um de seus principais aliados o padre Coughlin, havia se tornado, à época, o principal opositor de Roosevelt na arena política, articulando uma plataforma que reunia elementos radicais à direita e à esquerda.
Huey Long foi assassinado em 1935, e a German-American Bund foi dissolvida em 1939, logo após o início da Segunda Guerra Mundial. Mas o pé atrás com o poder da comunicação de massa e seu potencial de mobilização radical levaram a uma reestruturação de todo o aparato de comunicação pública. Para além da vitória nos campos de batalha, o combate ao nazifascismo e ao totalitarismo da Segunda Guerra apontava para um horizonte meio desesperador: nada garantia que, mesmo com a derrota do Eixo, tensões totalitárias latentes no campo das ideias não levassem ao florescimento do fascismo em outros pedaços do mundo. Até onde, num universo em que o discurso da propaganda é tornado paisagem e a mídia de massa se capilariza em escala inédita, seria possível, enfim, organizar uma esfera de comunicação pública assentada sobre uma racionalidade liberal e democrática?
A neutralização do imaginário cultural fascista e de seus códigos de sociabilização serviu como incentivo à articulação de um novo aparato de produção, organização e divulgação do pensamento. Dos pesquisadores da Escola de Frankfurt a oligarcas financiadores de museus, uma ampla rede de operadores – academia, governos, imprensa, mercado, artes – foi colocada em movimento, resultando no desenho de políticas públicas, circuitos de intercâmbio intelectual e produtos culturais. Um novo ambiente multimídia de debate público foi moldado, com o objetivo de manter sob controle o despertar de energias subjetivas igualmente novas.
Nesse rearranjo todo, as responsabilidades outorgadas à imprensa tinham importância especial. Desde o século XIX, já cabia a ela, afinal, as tradicionais funções de registro, organização e divulgação pública do conhecimento carimbado pela ciência – era a imprensa, por exemplo, a responsável pela documentação dos acontecimentos do mundo, e o caminho pelo qual as descobertas e conclusões encontradas nos laboratórios se tornavam acessíveis ao público. Mais que isso, era nos jornais também que os projetos de pensamento e os campos da disputa política apareciam representados. Da Revolução Francesa aos sindicatos ingleses, passando pelos manifestos e cartas públicas, a apresentação e o encaminhamento de demandas e grupos tinham, na imprensa, um poderoso centro de gravidade.
No pós-guerra, esse trabalho passou a ser acompanhado de um novo esforço. Além de registrar e organizar o conhecimento, e de posicionar e vocalizar os projetos em disputa na sociedade, a imprensa corporativa tinha agora a obrigação de agir como uma espécie de filtro civilizatório. O conhecimento validado e oferecido ao público ainda tinha de ser aferido como “verdadeiro” pela ciência, claro. Mas, além disso, uma nova camada de análise era colocada em funcionamento: a aferição de até onde ideias, discursos e atores mobilizados em torno da informação poderiam servir a uma erosão da democracia. Na prática, isso significava um compromisso de que grupos racistas, mesmo que se mantivessem ativos, não fossem normalizados com colunas de apologistas ao racismo nos grandes jornais, por exemplo.
É verdade que esse pacto não foi imune a tensões e rupturas – o papel instrumental da grande imprensa brasileira em processos de ruptura democrática nos últimos sessenta anos é um bom exemplo. Mas existia, enfim, uma intenção e uma tentativa de compromisso institucional: a estabilização das fronteiras do aceitável no ringue da democracia liberal.
Em 10 de dezembro de 2016, o presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, soltou um tuíte. O comunicado tinha certa urgência: “Informes da @CNN de que eu estarei trabalhando no O Aprendiz durante minha presidência, mesmo que em meio período, são ridículos e não verdadeiros – FAKE NEWS!”.
A declaração de Trump era uma espécie de controle de danos: pouco antes de sua posse, no início de 2017, boatos sugeriam que o novo presidente estaria animado com a possibilidade de, nas horas vagas da Casa Branca, continuar tocando seu reality show empreendedor. Em circunstâncias normais, a hipótese de um presidente em exercício dividir seu tempo entre o comando da nação e a apresentação de um programa de TV seria coisa de charges, daquelas com políticos de terno e cartola sentados em cima do Capitólio com sacos ilustrados com cifrões. Mas o fato era que os Estados Unidos estavam mesmo às vésperas da entrega da presidência a um homem de negócios tornado celebridade televisiva. E a imprensa, com seu poder de representação e organização da realidade, estava em frangalhos.
Ao longo do processo eleitoral que opôs Donald Trump a Hillary Clinton, teve curso uma aparentemente inédita intensificação na produção e circulação de desinformação. O fato em si não era exatamente novidade – notícias falsas e propaganda descolada da realidade gravitam disputas democráticas desde sempre. Mas o processo encontrado nas eleições presidenciais norte-americanas tinha alguns aspectos novos. Conforme a corrida pelos eleitores ganhava tração, o volume de notícias falsas que circulavam na web se espalhava a ponto de embaralhar todo o sistema de notícias. Esses conteúdos, criados e circulados por plataformas on-line descoladas do sistema da imprensa tradicional, ganharam alcance exponencial conforme seus links eram semeados pelo ecossistema das redes sociais. Os efeitos desse novo maquinário de notícias falsas (ou fake news) no liberal ambiente de comunicação norte-americano, no meio de um processo de disputa presidencial, tornaram-se um dos principais eixos da análise e da cobertura política entre 2015 e 2016. A antiga expressão se transformou no jargão mais quente da temporada: da denúncia de operações de desinformação on-line a boatos e questionamentos sobre a legitimidade institucional da imprensa, o termo fake news adquiriu múltiplos usos para múltiplos grupos.
A investigação dos responsáveis pelo embaralhamento do sistema da imprensa dos Estados Unidos não ficou imune à própria desestabilização que procurava desvendar. Para parte considerável da opinião pública norte-americana, a máquina de desinformação acionada durante as eleições é uma ação dos serviços russos de inteligência, que teriam colocado em prática plataformas on-line deliberadamente mentirosas para intoxicar, a partir do Facebook, a esfera pública dos Estados Unidos. Essa hipótese, que recebeu o nome de Russiagate, é rechaçada, por sua vez, por outros setores da opinião pública local, que consideram o noticiário sobre uma intervenção russa, ele mesmo, uma ação de fake news orquestrada por velhos operadores da política e da imprensa. Uma espiral de retroalimentação e de colapso do mercado de opinião que, ao fim, se espraia a ponto de engolir o próprio termo que a busca definir.
O trabalho de manter à margem do debate público coisas como o totalitarismo e a intolerância trouxe, junto ao peso da responsabilidade, um considerável poder a ser exercido pela grande imprensa. A possibilidade de oferecer (e escrever) uma coluna em um jornal ou de convidar alguém a uma poltrona de debate televisivo dá aos operadores da imprensa um papel de validação institucional que, no fim do dia, é vivenciado como poder real. É a capacidade de acelerar ou demolir agendas públicas, de alavancar ou minar candidaturas – de registrar ou invisibilizar o que servirá à organização do presente. Um poder que, a história nos recorda, não é exatamente imune à cooptação por interesses econômicos e políticos.
A crítica à concentração e ao abuso do poder institucional dos meios de comunicação de massa (e da imprensa corporativa em especial) é um traço definidor do ideal encapsulado na internet. O projeto de um novo sistema do conhecimento e de uma nova lógica de imprensa, baseados em redes horizontais, colaborativas e auto-organizáveis, foi por muito tempo um dos traços mobilizadores essenciais da cibercultura. A viabilização desse ideal, porém, parece ter gerado algumas ondas de choque. Ao transferirmos para o grid da internet as tarefas de organização, registro e validação do presente, a própria lógica do conhecimento é também forçada a uma transformação. Tornado informação, o conhecimento é desmembrado, descolado de seu arcabouço institucional e lançado a um constante processamento e reconfiguração. Na arquitetura da internet, dados são apenas dados – derivativos financeiros, memes de gatos e despachos da Associated Press são pedaços de código compartilhando uma mesma infraestrutura tecnológica e informacional.
No acomodamento das responsabilidades e poderes desse novo mundo, plataformas como o Facebook, altamente capilarizadas e com recursos virtualmente infinitos, impõem-se como os modernos centros de organização e validação do debate público. Suas métricas de engajamento, numa entropia, naturalizam-se como os novos indicadores de consistência e relevância, índices de interesse e status (afinal, assuntos e perfis muito citados são elevados, nessa lógica, a certa eminência), mas que não necessariamente oferecem grande consistência quanto ao seu vínculo com o universo do conhecimento ou com os limites da democracia liberal. Memes defendendo a teoria da Terra plana ou pensatas pregando a esterilização forçada de imigrantes podem ter alcance e relevância quanto ao tamanho de suas métricas, embora não caibam em nenhuma discussão democrática razoável. Uma nova corrida do ouro da desinformação é colocada em curso: tornado informação descontextualizada, o conhecimento, desmembrado e espalhado por redes não lineares, torna-se insumo para a produção de ruído. Uma inundação informacional que, liberada de qualquer validação científica e política, desorganiza e esgarça o debate público, levando, no limite, a rachaduras nos portões que mantinham os bárbaros para fora.
Em 2018, às vésperas das eleições presidenciais no Brasil, o caos norte-americano ganha contornos de profecia. Enquanto redes pulverizadas por Facebook e WhatsApp se transformam em um moto-contínuo de desinformação, a imprensa tradicional, numa revisão unilateral das definições da ciência e da filosofia política, decide apresentar como “centro” o espectro político que vai da centro-direita à borda da direita radical. A desconfiança em relação à imprensa corporativa (causada, entre outras coisas, por recorrentes abusos em eleições passadas) ajuda a viabilizar, na figura de Bolsonaro, a primeira candidatura presidencial abertamente fascista após a redemocratização. Em meio a isso tudo, o Tribunal Superior Eleitoral acena com a possibilidade de anulação das eleições em caso de fake news – embora o entendimento do termo esteja ainda aberto a definições.
A desorganização informacional acionada pela arquitetura das redes tem como contraponto um sistema de organização da informação igualmente em crise – o repetido hábito da grande imprensa de sacar a carta da “mediação distanciada” para vender ações discutíveis (como as manobras em favor de grupos políticos ou a imposição de interesses econômicos) parece cobrar, enfim, o preço de sua relação com o público. Enquanto isso, os Protocolos dos Sábios do Sião continuam circulando pela internet. E o livro de Sinclair Lewis, passados oitenta anos, voltou a aparecer nas listas de mais vendidos.
*Tiago C. Soares, pesquisador e jornalista, é doutorando em História pela USP. É associado ao Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor/Unicamp) e à Cátedra Unesco em Comunicação Aberta.