O que muda na prática com a privatização da Eletrobras

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Marcelo Roubicek

Empresa define preço da nova oferta de ações e sela repasse ao setor privado. O ‘Nexo’ ouve especialistas sobre como isso deve impactar os consumidores, o setor elétrico, o governo e o meio ambiente

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A Eletrobras definiu em R$ 42 o preço da ação no processo de capitalização. Com esse passo realizado na quinta-feira (9), a privatização da maior empresa do setor elétrico brasileiro foi selada – as novas ações começam a ser negociadas na bolsa de valores na segunda-feira (13).

Os valores totais levantados na operação ficaram em R$ 29,3 bilhões – isso sem incluir lotes adicionais, que devem elevar o montante a R$ 33,7 bilhões. A capitalização da Eletrobras é a maior privatização feita no governo de Jair Bolsonaro, que tenta a reeleição em outubro. O ministro da Economia, Paulo Guedes, indicou que o dinheiro poderá ser usado para bancar reduções de tributos sobre combustíveis.

A Eletrobras é uma estatal lucrativa. A empresa, por exemplo, R$ 5,7 bilhões em 2021. Ela é responsável por cerca de um terço de toda a capacidade de geração de energia elétrica no Brasil. Além disso, ela tem forte atuação na área de transmissão de energia, com quase metade das linhas do país.

A justificativa dada pelo governo para privatizar a estatal é atrair investimentos e tornar a maior empresa do setor elétrico brasileiro mais eficiente.

Neste texto, o Nexo conversa com especialistas para entender o que muda com a privatização.

Como funciona a privatização

Tecnicamente, a privatização é apenas uma das possíveis formas de desestatização. Por convenção, a palavra “privatização” acaba sendo usada normalmente como sinônimo. Há diferentes formas possíveis de desestatizar uma empresa: concessão, venda de ativos e parceria público-privada são alguns exemplos.

No caso da Eletrobras, a forma escolhida foi a capitalização. Isso significa que a Eletrobras – que está listada na bolsa de valores – emitiu novas ações para oferta pública. A negociação desses papéis no pregão começa na segunda-feira (13). Com a venda desses novos papéis a diferentes acionistas, a participação do governo federal fica diluída de 62% para cerca de 45%. O governo deixa de ser o acionista majoritário da empresa.

É a maior privatização brasileira desde a Telebras, empresa de telecomunicações que foi repassada ao setor privado em 1998. Além do dinheiro que entra para o Tesouro – estimado, antes da precificação, em R$ 25,3 bilhões –, outros R$ 32 bilhões devem ir, ao longo de 25 anos, para a Conta de Desenvolvimento Energético, um fundo que tem como objetivo bancar políticas públicas no campo da energia elétrica. Esse dinheiro será transferido pela Eletrobras privatizada. Por fim, quase R$ 10 bilhões irão para compromissos de investimentos em infraestrutura, a serem feitos em dez anos.

Mesmo deixando de deter mais de 50% da empresa, a União mantém a chamada “golden share”. Trata-se de um mecanismo que dá ao governo privilégios como poder de veto em decisões estratégicas.

Apesar da capitalização, o governo não cederá à iniciativa privada algumas subsidiárias da Eletrobras que atuam em setores considerados estratégicos. Foi criada uma nova empresa estatal para manter sob controle da União a Eletronuclear – responsável pelas usinas de Angra 1, 2 e 3 – e a Usina Binacional de Itaipu.

O caminho da privatização

A privatização da Eletrobras teve início quando Bolsonaro publicou uma medida provisória em fevereiro de 2021. Durante a tramitação no Congresso, os parlamentares incluíram os chamados “jabutis” – medidas estranhas ao tema central da proposta.

O principal deles é a obrigação do governo de contratar quantidades fixas de energia de usinas termelétricas movidas a gás natural – fonte cara e poluente. Os parlamentares usaram uma manobra para impedir que o presidente vetasse esse trecho. Há suspeitas de que os jabutis atenderam a demandas do lobby do setor privado de gás.

O texto foi aprovado pelo Congresso em junho de 2021 e sancionado no mês seguinte. Após o cumprimento de uma série de passos – como fase de estudos e audiência pública sobre o tema –, a privatização recebeu aval da assembleia de acionistas da empresa. Por fim, a operação foi aprovada no Tribunal de Contas da União, antes de seguir para os últimos passos e ter a capitalização selada na quinta-feira (9).

O que muda para os consumidores

Desde a aprovação no Congresso do texto que permitiu a privatização, especialistas do setor elétrico argumentaram que os jabutis que determinam a contratação de energia termelétrica devem levar a um aumento na conta de luz. Isso porque essa energia deve ser contratada junto a usinas que ainda precisam ser construídas – os custos dessas obras devem ser repassados ao consumidor.

Além disso, a energia termelétrica normalmente é mais cara que a hidrelétrica, responsável por cerca de dois terços de toda a energia gerada no país. Isso também deve levar a um aumento na conta de luz.

Para além dos jabutis, a economista Clarice Ferraz, professora da escola de Química da UFRJ e diretora do Instituto Ilumina, afirmou ao Nexo que a privatização deve levar a uma mudança no regime de comercialização de energia, com prováveis aumentos tarifários de dimensão ainda desconhecida.

Em 2012, uma medida provisória publicada pela então presidente Dilma Rousseff instaurou um regime pelo qual parte da energia produzida no país deveria ser vendida às distribuidoras a preço de custo. Com a privatização da Eletrobras, deve ocorrer uma descotização – ou seja, o fim desse regime, de maneira escalonada (entre cinco e dez anos).

Essa energia antes cotizada poderá ser vendida pelas usinas às distribuidoras a preços de mercado, que tendem a ser mais altos, segundo a professora da UFRJ. “É aqui que tem o maior risco de explosão tarifária. A distribuidora vai perder esses contratos [cotizados] e vai ter que buscar no mercado”, disse Ferraz. “Não sabemos a que preço isso vai ser”.

O governo do presidente Jair Bolsonaro nega que esse aumento de tarifas vá acontecer. Ele argumenta que eventuais pressões tarifárias da descotização serão compensadas com os repasses previstos pela Eletrobras à Conta de Desenvolvimento Energético – os recursos poderão ser usados para aliviar esses apertos.

Rosana Santos, pesquisadora do FGV-Ceri (Centro de Estudos e Regulação em Infraestrutura da Fundação Getulio Vargas), disse ao Nexo que os aportes à conta podem não ser suficientes para ter impactos relevantes sobre a conta de luz. “A privatização da Eletrobras tem o poder de baratear um pouco a tarifa por conta desse dinheiro que vai entrar na CDE [Conta de Desenvolvimento Energético]. Mas não é a panaceia e não vai resolver a questão do nível tarifário que temos hoje”.

Além disso, Santos apontou outro fator na equação tarifária: o risco hidrológico, que representa o custo maior de produção de energia em momentos de escassez de água (como ocorreu em 2021). Atualmente, esse risco é bancado pelos consumidores – com a descotização, passará para as empresas geradoras de energia.

O governo diz que essa mudança irá “retirar o ônus dos consumidores”, levando a uma redução da tarifa. Mas Santos é cética quanto a isso: “2021 foi um ano muito complicado, mas houve anos em que isso beneficiou o consumidor. Não dá para afirmar que essa descotização vai diminuir a tarifa para o consumidor”.

O que muda para o setor elétrico

O governo e diversos agentes de mercado afirmam que a privatização da Eletrobras irá aumentar a eficiência e destravar investimentos no setor elétrico brasileiro. Ferraz, da UFRJ, discorda.

“É um setor que está precisando de inovação e de investimento em infraestrutura”. Ela afirmou que dificilmente esses aportes acontecerão, uma vez que “estamos num setor elétrico com muita incerteza, extremamente judicializado” – isso sem falar na “profunda crise econômica” vivida no país.

Ferraz também disse que a eficiência das operações da Eletrobras pode ser reduzida, uma vez que há a tendência de forte cortes de custos, com redução do quadro de funcionários e menor gasto com equipamentos e manutenção. “As consequências são muito severas no setor elétrico”, disse a professora da UFRJ. “A gente viu o caso do Amapá [em novembro de 2020]. No caso de um novo apagão, com a Eletrobras privatizada, quem iria socorrer?”.

Santos, do FGV-Ceri, não segue a mesma linha. Ela afirmou que a empresa vem melhorando a eficiência de sua operação desde 2016, e que “isso possibilita que ela tenha mais apetite de investimentos”. “A privatização destrava o investimento em transmissão e geração, que estava travado não porque não havia dinheiro, mas sim pelas dificuldades de investir como empresa estatal”, disse a pesquisadora.

Com relação à redução do quadro de funcionários, Santos disse que a regulação das operações pela Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) deve impedir flexibilizações excessivas. Ela também afirmou que a tendência é que haja substituição de funcionários por automação.

O que muda para o governo

Santos afirmou que o repasse da Eletrobras ao setor privado acontece em um momento em que a empresa “precisava sair do lugar onde ela estava”. “Era uma empresa que não investia mais, que precisava investir em modernização dos seus ativos, mas estava travada. Então alguma coisa tinha que acontecer: ou voltar a investir mesmo como estatal, ou ser vendida”, disse.

Ferraz, por sua vez, criticou a decisão de privatizar a empresa. “Seria muito importante a Eletrobras continuar na mão do governo, porque justamente ela detém o estoque regulador” – que seria a água estocada nos reservatórios das usinas hidrelétricas e as linhas de transmissão que atravessam o país inteiro. Nesse sentido, ela afirma que o governo consegue exercer “as funções do armazenamento, de trazer a segurança de abastecimento e de dar uma previsibilidade e equilíbrio dos preços”. Ela também afirmou que o golden share do governo pode não ter efeitos relevantes sobre o futuro da empresa.

A professora da UFRJ também disse que é importante que o governo, via Eletrobras, tenha controle sobre o estoque de água doce do país, presente nos reservatórios. “É água para energia, abastecimento humano, irrigação, turismo, para todos os outros usos. Nenhum país do mundo privatizou o estoque de água doce, é uma questão de segurança”.

Para além da questão estratégica, outro aspecto da privatização é o dinheiro que entra para o governo. A estimativa inicial era de R$ 25,3 bilhões indo para o caixa do Tesouro. Esse valor equivale, por exemplo, a quase 30% de todo o orçamento anual do Auxílio Brasil, principal programa de transferência de renda do país em 2022.

O governo Bolsonaro cogita usar o dinheiro para bancar parte do pacote para tentar reduzir os preços dos combustíveis. Quem deu essa indicação foi o ministro da Economia, Paulo Guedes.

Como as medidas de desoneração de combustíveis valem apenas até 31 de dezembro de 2022, o governo Bolsonaro está considerando, na prática, vender uma estatal de energia estratégica para o país a fim de bancar o subsídio no preço dos combustíveis no ano em que vai tentar renovar seu mandato.

O que muda para o meio ambiente

A privatização da Eletrobras também deve ter efeitos ambientais. Segundo Ferraz, “há a questão do perfil privado dessa empresa”. “Como agente privado, ela passa a buscar o lucro – isso num país onde a legislação ambiental vem sendo atropelada”, afirmou. Ou seja, a economista acredita que os efeitos ambientais podem ser negativos.

Outros motivos apontados por Ferraz para justificar essa ideia são os próprios jabutis inseridos pelo Congresso no texto da privatização. Ao prever a construção e contratação de termelétricas a gás – e também a compra de energia de pequenas centrais hidrelétricas –, o Congresso inseriu trechos “muito negativos em termos de impactos ambientais”, disse a professora da UFRJ.

Santos também criticou os jabutis e seu impacto econômico e ambiental: “Essas térmicas não foram pensadas de forma técnica, para dizer o mínimo”, afirmou.

A pesquisadora, no entanto, disse ao Nexo que a privatização “é uma oportunidade para a Eletrobras continuar sendo cada vez mais verde”. Ou seja, na visão de Santos, a operação pode abrir caminho para maiores investimentos em fontes renováveis, como eólica e solar.

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