Pesquisador denuncia que modelo de exploração do campo no Brasil também é responsável por tragédias ambientais e climáticas como as que ocorrem no Sul do país
Um estudo publicado em setembro de 2021 pela Fundação Friedrich Ebert no Brasil, produzido pelos pesquisadores Marco Antonio Mitidiero Junior e Yamila Goldfarb, “Mudança climática, energia e meio ambiente – O agro não é tech, o agro não é pop e muito menos tudo”, mostra como o agronegócio no Brasil aplica estratégias para construir o consenso na sociedade de que é o setor mais dinâmico, moderno e importante da economia brasileira. O trabalho detalha como funciona o poder de influência do setor que recebe muito e contribui pouco com o país – confira a pesquisa no link.
A recente tragédia das inundações no estado do Rio Grande do Sul deixou o “rei nu”. O agronegócio influi na política pública de gestão ambiental no Brasil, o que contribui para os cataclismas que começam a fazer parte do cenário climático e ambiental do Brasil, como afirma Marco Antonio Mitidiero Júnior, que é doutor em Geografia Humana pela USP.
“O que acontece no Brasil é o exemplo da influência do agronegócio na gestão pública, identifiquei isso de forma nítida em minha pesquisa. Então, a narrativa do progresso usado pelo agronegócio, é um discurso que diz: preservar a natureza barra o progresso. Para isso afrouxam às leis, aplicando a tese do ‘Estado mínimo’, um modelo onde não precisa ter leis, não pode regular, não pode bloquear o desmatamento; a ocupação de áreas de interesse natural importante, como a beira dos rios, a chamada mata ciliar. Um exemplo cabal disso é o governo do Eduardo Leite no Rio Grande do Sul considerado uma referência na aplicação do Estado mínimo. A segunda dimensão do que está acontecendo no Brasil é que o impacto causado pelo agronegócio vem destruindo solos, rios e florestas. Isso é resultado do modelo de exploração do campo no país”, exemplifica Mitidiero.
Uma bancada que é um partido político
A influência do agronegócio na esfera pública brasileira é cada vez mais evidente nos poderes Executivo e Legislativo. Um exemplo disso são os números da bancada ruralista, que possui mais de 324 integrantes, em um universo de 513 parlamentares, na Câmara dos Deputados, em Brasília; e com outros 50, de 81 senadores do Senado Federal. Ou seja, na Câmara dos Deputados o agronegócio domina o equivalente a 63%, e no Senado o porcentual chega a 61%. Essa maioria faz com que a bancada ruralista, conhecida como Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), preposta do agronegócio, seja efetivamente um partido político de fato, a partir de um intenso lobby.
Essa mesma bancada, se aproveitando da mobilização em torno da tragédia que já afeta mais de 437 municípios do Rio Grande do Sul, que registrou mais de 147 mortes, afetando quase dois milhões de pessoas no estado, promove um novo “passa boiada” para a chamada pauta-bomba climática que é a seguinte:
PL 3334/2023: proposto pelo senador Jaime Bagattoli (PL/RO), o projeto prevê reduzir de 80% para 50% a cota de reserva de imóveis rurais localizados na Amazônia Legal. Segundo o Ministério do Meio Ambiente, a eventual redução pode representar um desmatamento potencial de pelo menos 281.661 km², o equivalente a todo o território do Tocantins. O autor do PL já admitiu ter fazenda em terras indígenas – confira no link.
PL 364/2019: elimina a proteção de todos os campos nativos e outras formações não florestais – proposto pelo deputado federal Alceu Moreira (MDB-RS). No fim de março, o projeto foi aprovado na CCJ da Câmara, com o relatório favorável do também deputado gaúcho Lucas Redecker (PSDB-RS). O gaúcho Alceu Moreira, em 2017, foi acusado em um depoimento dado à Polícia Federal, por um diretor da JBS, Ricardo Saud, relatório da Polícia Federal de ter recebido R$ 200 mil da empresa – confira no link.
PL 1282/2019: de autoria do senador Luis Carlos Heinze (PP-RS), autoriza obras de irrigação em áreas de preservação permanente, o que, segundo o Observatório do Clima, potencializaria a crise hídrica e o conflito pela água no Brasil, tendo outro projeto semelhante (PL 2168) proposto pelo deputado José Mário Schhreimer (MDB/GO). Heinze é um ruralista gaúcho, produtor de arroz, que ganhou notoriedade nacional ao defender o negacionismo bolsonarista na CPI da Covid, em cujo relatório teve seu nome pedido para indiciamento – confira no link.
Já o deputado Schhreimer foi presidente do Sistema FAEG/SENAR; vice-presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) – confira no link
PL 2374/2020: prevê a regularização de propriedades rurais que não respeitem os limites mínimos de Reserva Legal em razão de supressões de vegetação nativa realizadas entre 22 de julho de 2008 e 25 de maio de 2012, exigindo-se que a compensação seja equivalente ao dobro da área de reserva legal a ser recuperada.
O projeto é de autoria do senador Irajá do PSD (TO), filho da ex-senadora e ministra Kátia Abreu, tendo sido autuado pelo Ibama por desmatar vegetação de preservação permanente, sem permissão ou licença ambiental, em área equivalente a 75 campos de futebol. O detalhe é que, atualmente, Kátia Abreu integra o Conselho de Administração da JBS – confira aqui.
“Eles têm um poder legislativo sem tamanho. É por isso que temos vivenciado nos últimos dez anos uma enxurrada de projetos de lei e outros institutos legislativos que fragilizam, por exemplo, a questão ambiental. Fragilizam a reforma agrária, abrem terras para a mineração e grandes monoculturas. É evidente que esse pessoal tem uma grande força no Executivo e no Legislativo, dominando as pautas públicas, abrindo caminho para o avanço do agronegócio sem nenhuma preocupação social e ambiental. Isso está muito claro na realidade brasileira, assistimos a isso ao vivo. São projetos com reversões de conquistas, tanto da pauta ambiental, como da pauta social promovidas pelos ruralistas de uma forma inimaginável. Não podemos esquecer também da esfera do Judiciário, que tradicionalmente trabalha a favor da grande propriedade fundiária e do agronegócio”, mostrando como os representantes do setor influem na agenda de desenvolvimento econômico, social e ambiental do Brasil.
Parasita e venenoso
Mitidiero avalia que o setor agropecuário se ergueu em função da espoliação dos recursos públicos. “O agronegócio é uma espécie de parasita do Estado brasileiro. Ele recebe muito do Estado e nos devolve muito pouco, contribuindo em tragédias como essa do Rio Grande do Sul. Esqueci de citar a chuva, o mar de agrotóxico que está sendo despejado sobre a população brasileira, que está engolindo a partir desse modelo produtivo. O Brasil é o maior consumidor de agrotóxico do mundo, isso tem um impacto no meio ambiente estarrecedor”, afirma de forma contundente.
O pesquisador cita que o lobby ruralista conseguiu no Congresso Nacional aprovar isenção tributária para comprar veneno, o agrotóxico no Brasil é barato porque o governo concede isenção tributária. “Isso tudo só tem uma finalidade: garantir o aumento da margem de lucro.”
Além de atuar de forma ostensiva nas instituições de poder do país, o agronegócio promove uma intensa campanha para garantir uma boa imagem perante a opinião pública.
“O agronegócio investe pesado em propaganda para conquistar corações e mentes da população brasileira, se colocando como o ‘motor’ da economia, de que são sustentáveis. Mas isso é como tapar o sol com a peneira, eles não são sustentáveis, isso é comprovado quando buscam isenções de todo o jeito”, lembrando a ladainha de que ‘o agro carrega o Brasil nas costas’. A gente sabe que agora, neste momento, no Sul do Brasil, eles não estão fazendo nada. Quem está ajudando e organizando as pessoas afetadas na enchente são os movimentos populares como o MST, entre outros”, afirma.
Trabalho escravo
Segundo o Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho, entre julho de 1995 e julho de 2020, foram resgatados pelo extinto Ministério do Trabalho e Emprego cerca de 55 mil trabalhadores em condições análogas à de escravo, sendo os estados do Pará (13.173), Minas Gerais (6.622) e Mato Grosso (6.172) recordistas em submeter trabalhadores a esse modelo criminoso de exploração.
Os setores que concentram a maior parte desses escravizados são aqueles que compõem as cadeias produtivas de commodities agrícolas. Entre 2003 e 2018, conforme dados do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas, a criação de bovinos para corte, o cultivo de arroz e a produção da cana-de-açúcar foram as atividades em que mais predominaram a escravidão contemporânea, com 32%, 20% e 11% dos trabalhadores resgatados, respectivamente.
Hora de pautar o debate sobre o modelo produtivo
Marco Antonio Mitidiero Junior considera importante colocar na pauta da agenda pública de debate o modelo produtivo do Brasil e os impactos que ele vem causando. “Nós estamos observando agora o impacto ambiental, mas não ficou somente restrito a esse tipo de impacto. Ele é social também, o agronegócio é responsável pelo maior número de resgates em trabalho escravo, a grilagem de terras públicas”, lembra.
Ainda, segundo o estudo citado no início desta reportagem, a agropecuária compõe a menor fração do PIB brasileiro. O trabalho apresenta uma série histórica (2002 a 2018) na qual o agro contribui, em média, com apenas 5,4% do PIB, enquanto o setor industrial com 25,5% e o setor de serviços 52,4%.
Além disso, a pesquisa mostra que é o setor que paga o menor salário aos seus trabalhadores quando comparado a outros setores. “O PIB do agro chega a apenas 6% na economia brasileira, isso no ponto de vista da produção da riqueza é considerado pouco para a nação. É pouco emprego gerado, é pouco PIB, e o que é gerado é altamente concentrado nas mãos de poucos fazendeiros e das multinacionais, que acabam comprando a produção e exportam. Então é um processo de pilhagem histórico que vivemos no Brasil. Arrancam riquezas do Brasil levando a preço de banana. O que temos é um modelo fracassado de desenvolvimento, que só gera desigualdade social e que traz um impacto ambiental, em algumas situações irreversíveis”, completa.
Neste momento, o pesquisador integra uma comitiva de indígenas do Pará que denunciam impactos da mineração na Amazônia. Na última quinta-feira (9/05) a comitiva esteve presente na University College of London, no Reino Unido, para relatar a luta contra as grandes empresas que extraem ouro e bauxita para os mercados do Brasil, Europa e Ásia.