Por que a transição ecológica exige nova democracia

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Em 20 anos, energias renováveis tiveram avanço notável, porém dependência da energia fóssil não mudou. Só haverá transição climática com participação cidadã de um povo convicto de sua necessidade. E liberto da desesperança do fundamentalismo econômico

Os bens e serviços que compõem a base das sociedades contemporâneas apoiam-se em quatro materiais: cimento, aço, plástico e amônia. São eles que deram lugar às grandes transformações que revolucionaram a vida social dos últimos 150 anos, do saneamento básico à eletricidade, do automóvel à televisão, passando pelo raio-x, os antibióticos e o espetacular aumento da oferta alimentar global, graças à combinação de sementes cujo alto potencial produtivo revela-se com a aplicação de fertilizantes nitrogenados.

Estes materiais tornam irreconhecíveis as sociedades atuais, quando comparadas a qualquer período da história humana anterior a meados do século 19. O que muitas vezes não se leva em conta é que cada um deles só existe graças à capacidade – que se formou desde o século 17, na Inglaterra, com o carvão e se intensificou na segunda metade do século 20 com o petróleo e o gás – de retirar do subsolo a matéria orgânica fossilizada a que a energia solar deu origem, ao longo de centenas de milhões de anos.

Nossa dependência dos combustíveis fósseis vai, portanto, muito além da gasolina, do diesel e da geração de energia elétrica ou do aquecimento domiciliar. Por maiores que sejam as mudanças provocadas pela revolução digital (que igualmente depende destes materiais), ela é ínfima diante da transformação trazida pelas inovações tecnológicas de meados do século 19 para cá e que, todas elas, só existem graças ao uso em larga escala de combustíveis fósseis.

É verdade que as energias renováveis modernas na geração de eletricidade tiveram avanços e massificação espetaculares nos últimos 20 anos. Na mobilidade, a União Europeia anuncia o fim da fabricação de automóveis com motores de combustão interna até 2035. Mas embora a oferta de renováveis modernas (solar, eólica e novos biocombustíveis) tenha aumentado 50 vezes nos últimos 20 anos, a dependência global de fósseis caiu apenas de 87% a 85% neste período. E entre as fontes não fósseis de geração de eletricidade o papel primordial cabe às usinas nucleares e à hidreletricidade – e muito menos àquelas consideradas renováveis modernas.

É incontornável, portanto, uma conclusão incômoda: com exceção dos importantes avanços conquistados na geração de eletricidade, globalmente, a transição para uma economia de baixo carbono ainda mal começou.

O desafio da transição para que se descarbonize mais de 80% do uso final de energia pelas indústrias, pelos domicílios, pelos transportes, pelo comércio e na agricultura é inédito e muito mais difícil do que foi a transição do uso da energia humana, animal e da biomassa para a energia fóssil em larga escala. É o que mostra com espantosa quantidade de informações o mais recente livro de Vaclav Smil, How the World Really Works (Como o Mundo Realmente Funciona, em tradução livre). Smil é professor emérito da Universidade de Manitoba, no Canadá, autor de quarenta livros e mais de 500 artigos sobre alimentação, energia, padrões de consumo e inúmeros outros temas decisivos para o desenvolvimento sustentável.

A conclusão de Smil é que não há qualquer chance de as metas de descarbonização da economia global serem atingidas nos prazos em que os acordos internacionais as estabelecem, ou seja, 2030 ou 2050. Seu capítulo final oferece argumentos que mostram a superficialidade das previsões otimistas quanto ao futuro e acaba depositando esperanças na incerteza que permanece como “a essência da condição humana”.

Mas é possível e necessário ir além da timidez desta conclusão em dois sentidos. O primeiro está na urgência de que sejam aceleradas as pesquisas em torno da substituição dos materiais em que se apoia a riqueza das sociedades contemporâneas. Tão importante quanto descarbonizar a matriz energética, de transporte e do aquecimento domiciliar, é acelerar o uso da madeira como substituto ao aço e ao cimento, de empregar materiais orgânicos na obtenção de bioplástico e de generalizar as experiências bem sucedidas em torno da agroecologia. É fundamental, como mostra o recém-lançado relatório do World Transforming Technologies (Futuros do Bioplástico têm Raízes na Amazônia), orientar a própria pesquisa científica por missões, ou seja, com financiamentos e mecanismos para que, em prazos determinados, se consigam obter alternativas aos materiais hoje dominantes. A ideia de soluções baseadas na natureza, cada vez mais difundida nas organizações multilaterais de desenvolvimento, é uma inspiração neste sentido.

Mas nada disso tem qualquer chance de sucesso se o coração da luta global contra a crise climática não for ocupado pela drástica redução das desigualdades e pelo reconhecimento de que esta redução é a base da recuperação da democracia e da luta contra o fanatismo no mundo todo. Documento recente de uma importante agência do governo francês (France Stratégie) faz uma caracterização da natureza das urgências contemporâneas que escapa ao tripé convencional “social, econômico e ambiental”. O robusto relatório de France Stratégie (Soutenabilités: Orchestrer et Planifier l’Action Publique ou Sustentabilidades: Orquestrar e Planejar a Ação Pública, em tradução livre) começa afirmando: “atravessamos uma crise tríplice: ecológica, social e democrática”.

A crise democrática vai muito além da arquitetura das organizações governamentais. Em seu cerne está a ideia de que “não há como alcançar a transição ecológica em todas as suas dimensões se ela não for reconhecida pelos cidadãos como necessária e justa”. E o diretor de France Stratégie complementa com a urgência de que sejam reduzidas as desigualdades e, particularmente, “a mais inaceitável de todas elas: as desigualdades de destino”.

Se o tema das desigualdades e da participação cidadã é central para um país desenvolvido como a França, no Brasil ele é ainda mais importante. Impedir que o fanatismo fundamentalista continue dominando as políticas públicas e atacar seriamente as “desigualdades de destino” é precondição para respostas consistentes à crise climática.

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