Como garantir segurança, saúde e respeito às leis trabalhistas já tão precarizadas? Como manter a jornada de trabalho de 44 horas semanais, por exemplo?. A questão é tão candente que existem inúmeros projetos de lei tramitando no Congresso Nacional com a intenção de regular essa forma de trabalhar.
Inclusive o Ministério Público do Trabalho (MPT) divulgou em setembro do ano passado a Norma Técnica 17/2020 com instruções de procedimentos e obrigações para um bom andamento das funções de quem vende a força de trabalho.
O setor patronal critica as instruções do MPT como “impraticáveis” e “desfavoráveis” à manutenção do emprego e os representantes da classe trabalhadora lutam para garantir os direitos trabalhistas de todas e todos.
A discussão está apenas começando. Para a juíza do Trabalho, Valdete Souto Severo, presidenta da Associação Juízes para a Democracia (AJD), não há necessidade de uma nova legislação porque “nós precisamos que as regras que temos sejam cumpridas e aí estou falando da Constituição de 1988, que garante relação de emprego e limite à jornada, ambiente saudável de trabalho, entre outras coisas”.
Em entrevista ao Portal CTB, Valdete afirma ser necessário combater a precarização do trabalho na sua integralidade. “A opção legislativa no Brasil foi exatamente o contrário disso. Foi inserir na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) com a reforma trabalhista mais um inciso no artigo 62 para dizer que também quem realiza teletrabalho não está atingido pelas normas de regulação e limitação do tempo de trabalho, o que a nossa jurisprudência e a doutrina majoritária entendem que essas pessoas não têm registro de horário de trabalho e em consequência não há pagamento de horas extras”.
Mas, para a juíza gaúcha, não é difícil de manter o teletrabalho em condições adequadas. “Não há dificuldade alguma em impor limitação de horário. Se nós temos tecnologia suficiente para que o trabalho seja exercido por meios virtuais, basta criar dispositivo que limite a possibilidade de acesso a esse ambiente virtual em que o trabalho é realizado”.
Muitos juristas concordam que a lei já regulou o teletrabalho, mas as divergências são grandes e o debate permanece aberto e as instruções do MPT para a sociedade e para quem atua na Justiça do Trabalho são importantes.
Em concordância com Valdete, a secretária de Políticas Sociais da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), Vânia Marques Pinto lembra que “é muito comum acontecer de não notarmos o excesso de trabalho quando estamos em casa. Parece que dormimos com o computador e acordamos com o celular tamanho o excesso”.
De qualquer forma, não se pode cair no engodo da negociação entre patrão e empregado, que sempre deixa quem vive do trabalho em desvantagem, ainda mais na situação de alto índice de desemprego e necessidade de isolamento social por causa da pandemia.
De acordo com Valdete “a forma como estamos lidando com o teletrabalho no Brasil, aceitando que ele seja também uma forma de trabalho precarizado” ajuda a criar “uma sociedade de pessoas adoecidas” e “esse resultado já está aparecendo. Só que ele vai se agravar muito mais” se não “nos atentarmos para a necessidade de respeito às leis de convívio social”.
Valdete Souto Severo é juíza do Trabalho, presidenta da AJD, professora universitária e escritora.
Leia a entrevista na íntegra abaixo:
A pandemia trouxe a necessidade de se trabalhar em casa para muita gente, que transformações isso trouxe ao mundo do trabalho?
Valdete Souto Severo: O teletrabalho trouxe inúmeras e profundas mudanças que ainda não foram bem dimensionadas pelas pessoas porque mudou inclusive o que nós compreendemos como espaço de casa e espaço de trabalho.
Isso dificulta em larga medida a regulação do tempo de trabalho porque ao contrário do que nós podíamos fazer como opção política que é a criação de mecanismos para que os aplicativos, os e-mails, os programas saíssem do ar depois de determinado horário para evitar que as pessoas trabalhassem por mais tempo que a jornada prevista.
Na realidade o que ocorre não é o oposto?
A opção legislativa no Brasil foi exatamente o contrário disso. Foi inserir na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) com a reforma trabalhista mais um inciso no artigo 62 para dizer que também quem realiza teletrabalho não está atingido pelas normas de regulação e limitação do tempo de trabalho, o que a nossa jurisprudência e a doutrina majoritária entendem é que essas pessoas não têm registro de horário de trabalho e em consequência não há pagamento de horas extras e uma efetiva limitação porque sabemos muito bem o que acontece num país capitalista no qual nós já introjetamos de forma naturalizada a violência da lógica de metas.
Quais as consequências dessa opção?
As pessoas estão trabalhando bem mais, o que acarreta consequências de várias ordens. As consequências físicas e psíquicas pelo excesso de trabalho, pelo fato de permanecer muito tempo sentado, em vez de realizar uma atividade de se movimentar. Muitas pessoas que estão em teletrabalho já evitam sair de casa por estarmos em uma pandemia e o trabalho por meio telemático via de regra é exercido sentado, o que não é uma situação cômoda para o corpo humano. Isso gera uma série de adoecimentos físicos tanto quanto psíquicos e emocionais.
Como isso acontece?
As pessoas estão se relacionando através de uma tela de um computador ou de um telefone e isso pode parecer algo simples. Inclusive, as novas gerações vêm com certa naturalidade, mas isso não é natural. Isso tem uma implicação até no nosso inconsciente, na nossa forma de enxergar o outro.
Então somos um modelo de sociedade que já aposta no individualismo, o que já nos dificulta desde antes do nascimento e desde que nascemos através de vários mecanismos e estruturas como a competição na escola, a forma como a família é organizada nos dificulta ver o outro como alguém que nos complementa, como alguém que faz parte da nossa existência. Algo que hoje está sendo bastante discutido, especialmente no âmbito da doutrina feminista negra, da doutrina indígena, mas para a sociedade Ocidental isso é um desafio porque nós não somos ensinados a atuar como seres sociais, embora sejamos seres sociais. Soma-se a isso o trabalho atrás de uma tela de computador em que as pessoas não são mais de carne e osso, não têm cheiro, não têm proximidade.
O isolamento social adoece a sociedade ainda mais?
As pessoas se comunicam através de mensagens pelo WhatsApp ou no máximo por uma tela. É evidente que essa característica que é própria do sistema capitalista e se aprofunda. Essa também é uma tendência que gera problemas individuais, psíquicos, emocionais, mas que também gera um adoecimento social. Eu poderia dar inúmeros exemplos de adoecimento social.
A forma como as pessoas estão mais violentas, a impaciência com a dificuldade de determinadas pessoas, a facilidade com que uma briga no trânsito vira um crime de tentativa de homicídio porque um tiro é disparado, o aumento da violência doméstica. Tudo isso é em alguma medida consequência desse isolamento social que o teletrabalho potencializa.
A reforma trabalhista já precarizou as relações de trabalho. A atuação do MPT e uma legislação específica poderia mudar essa situação?
O MPT está fazendo o seu papel de determinar instruções aos patrões e empregados. Isso é legítimo.
Mas há uma discussão e inclusive existem inúmeros projetos de lei propostos para a regulamentação do teletrabalho, assim como existe também para regulamentação do trabalho através de plataformas digitais, que se convencionou chamar de uberização.
Isso me parece um grave equívoco. Pretender mais legislação como se isso, numa lógica ainda vinculada à racionalidade moderna liberal do século 17 fosse garantia de mudança cultural. Nós temos, sem dúvida nenhuma, um modelo social que ainda está ancorado nesses pressupostos.
Por exemplo, de que é preciso uma lei, portanto um texto que nos condicione a agir de determinada maneira, o que em alguma medida, por vezes, funciona. Basta pensarmos na lei que determina a obrigação do uso do cinto de segurança e como ela acabou mudando a nossa cultura em relação à forma de dirigir ou de estar dentro dos veículos automotores. Mas o que precisamos entender é que existem questões que são culturais e, por isso, não serão alteradas senão através da cultura, sobretudo quando nós já temos uma regra e esse é o caso do teletrabalho e do trabalho belisário.
Então não precisamos de nova legislação sobre o tema?
Nós precisamos que as regras que já temos sejam cumpridas e aí estou falando da Constituição de 1988, que garante relação de emprego e limite à jornada, ambiente saudável de trabalho, entre outras coisas. Por que não observar esses direitos para quem está em teletrabalho? Não há dificuldade alguma em impor limitação de horário. Se temos tecnologia suficiente para que o trabalho seja exercido por meios virtuais, basta criar dispositivo que limite a possibilidade de acesso a esse ambiente virtual no qual o trabalho é realizado. Já temos as regras, portanto.
Então imagine que hoje no contexto de um Parlamento tão conservador, de um governo absolutamente hostil à classe trabalhadora e de um Poder Judiciário que tem, em alguma medida, ratificado o desmanche da legislação social, como seria essa legislação? Se fosse possível acreditar que uma legislação de teletrabalho para dizer da obrigação de quem emprega força de trabalho, de criar limites ao uso dos meios digitais e, portanto limitar efetivamente a jornada, seria possível a aposta numa legislação como algo positivo para a classe trabalhadora?
Certamente não é o que vai acontecer porque não é isso o que os projetos de lei em tramitação preveem. Na minha opinião, portanto, não há nenhuma necessidade de nova legislação. O que precisamos é voltar a aplicar a CLT e a ter vontade de fazer valer a Constituição, as regras trabalhistas que estão na Constituição da República para todas as pessoas que vivem do trabalho, acabando com esses nichos onde o direito do trabalho não tem conseguido ingressar.
Como garantir segurança e saúde no teletrabalho então?
Na realidade não há nenhuma dificuldade insuperável para garantir a segurança e a saúde de quem trabalha através de meios telemáticos. O que acontece é que há sim uma opção política no sentido de precarizar todo o trabalho. Claro, quando pensamos no teletrabalho, por exemplo, todos os problemas físicos que decorrem do trabalho sentado diante de uma tela de computador, a primeira questão que vem à mente é de como o fiscal de trabalho ingressaria nas casas das pessoas para verificar a ergonomia ou como um agente de saúde pública faria esse controle para evitar, para prevenir o adoecimento.
Na realidade o nosso raciocínio ainda está invertido porque para a realização do teletrabalho é que quem emprega deveria demonstrar que forneceu os equipamentos adequados às instruções assim como ao acompanhamento.
Tem como exemplificar?
Se eu preciso, por exemplo, começar a dar aula por meio virtual, é a escola ou a universidade que precisam fornecer os meios telemáticos, inclusive acesso à internet e também verificar que os equipamentos sejam de tamanho e forma adequadas à minha altura, ao meu peso, etc. Também fornecer a manutenção feita por alguém da empresa que possa visitar a casa dos colegas e que faça esse trabalho por meio pessoal ou virtual, que dê orientação, como por exemplo, o Tribunal da 4ª região de Porto Alegre tem de orientação ergonômica. Isso é um dever do empregador.
O empregador não precisa de uma lei para cumprir com sua obrigação?
Não precisa de uma nova lei. Já está na Constituição. O que temos lá pode prevenir o problema. Seguindo as normas constitucionais podemos fazer a regulação efetiva da jornada de trabalho, tirando do ar o acesso a esses meios virtuais pelos quais se trabalha. Além do pagamento de eventuais horas extraordinárias e a atuação de quem emprega, criando condições ergonômicas de trabalho. Isso é mito complicado porque existem pessoas que não possuem em suas casas um local adequado, com iluminação adequada ou espaço com o silêncio necessário para trabalhar por meio telemático. Essas pessoas não podem simplesmente serem jogadas para a atividade do teletrabalho porque elas vão adoecer.
As condições adequadas de trabalho evitam o adoecimento?
Na verdade, elas já estão adoecendo. E isso não é um problema individual a ser tratado com o plano de saúde, mediante ao afastamento do trabalho. Nem terá solução efetiva se ficarmos apenas combatendo a consequência, ou seja, verificando os adoecimentos. E pensando em qual forma de tratamento essas pessoas precisam ter.
Para evitar que o adoecimento aconteça o melhor modo é garantir a essas trabalhadoras e trabalhadores a integralidade dos direitos que já estão previstos, repito, na Constituição e na CLT. Isso não é mera retórica. Isso significa, por exemplo, como consta no artigo 2º da CLT, o empregador deve fornecer os meios para execução do trabalho. Então precisa ter um teclado adequado e um adaptador. A cadeira deve ser ergonômica, a altura tem que estar certa, a tela do computador deve estar na forma correta. Se isso não acontece já estamos colocando a saúde dessa pessoa em risco e com isso o adoecimento acontecerá.
Da forma como estamos lidando com o teletrabalho no Brasil, aceitando que ele seja também uma forma de trabalho precarizado. O que está provocando uma sociedade adoecida. Esse resultado já está aparecendo só que ele vai se agravar muito mais. Vai se agravar com o tempo e vai se agravar com a soma dessas consequências que antes eu disse não terem sido ainda bem dimensionadas para o convívio familiar e social dessas pessoas que estão sendo obrigadas a trabalhar 8, 10, 12 horas por dia isoladas à frente da tela de um computador.
Fonte: Portal CTB