Para sair realmente do ‘efeito bolha’, é essencial que reconheçamos que as desigualdades do mundo off-line são reproduzidas no mundo on-line
Por Ana Mônica Medeiros Ferreira, Miss Lene Pereira da Silva, Érica Milena Carvalho Guimarães Leôncio e Ruth Maria da Costa Ataíde*
Estamos enfrentando uma crise humanitária e de saúde sem precedentes. O Coronavírus atingiu as mais diversas economias enfraquecidas pela cruel e crescente desigualdade em diversos níveis. Muitas rotinas e vidas mudaram drasticamente em menos de um mês. Entre as principais mudanças advindas das medidas de isolamento social voltadas ao combate da pandemia está o investimento em tecnologias digitais, especialmente a internet, para a realização das atividades por videoconferências, uso massivo de redes sociais e trabalho na modalidade home office. É sabido que precisamos ficar em casa para que o vírus não se propague e cause efeitos irreparáveis. Mas até que ponto os brasileiros podem aderir ao modelo de trabalho à distância na atual situação? Até que ponto as condições objetivas de cada um os permitem ficar em casa? Precisamos refletir sobre desigualdades também no meio digital e o atual fetiche pela tecnologia digital. É necessário debater a universalização da internet no Brasil.
Embora nosso país tenha um número crescente de usuários da Internet, ainda existe uma grande parte da população sem nenhum tipo de acesso, especialmente entre os mais pobres, aqueles com mais de 60 anos, os que vivem em comunidade tradicionais (indígenas, quilombolas) e em áreas rurais. Dados nacionais do Cetic.br/NIC.br (2019) em avaliação do desenvolvimento da Internet no Brasil em parceria com a UNESCO mostraram que cerca de 61% das residências brasileiras estão conectadas. Nas áreas rurais, apenas 34% das famílias têm acesso à Internet, encontrando-se em apenas 30% das casas de famílias de baixa renda (nível socioeconômico D e E). Por outro lado, em famílias de alta renda (A e B) as proporções são 99% e 93%, respectivamente, revelando grandes desigualdades em termos de acesso. Os dados também indicam que o acesso fixo, especialmente entre grupos com taxas mais baixas de conexão, não evoluiu o suficiente para que possa ser considerado um meio importante para a universalização, tendo as conexões móveis, via aparelhos de celular se convertido nos principais vetores de difusão da Internet.
Outra preocupação diz respeito ao uso das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) nas escolas. Segundo o Cetic.br/NIC.br, em 2017 apenas 39% dos estudantes nas áreas urbanas usavam a Internet nas escolas. Nas áreas rurais, o cenário do grau de conectividade era pior: apenas 36% das escolas tinham acesso à Internet. Diante dos dados apresentados na pesquisa, percebe-se que o uso das TIC nas escolas brasileiras ainda não progrediu satisfatoriamente, embora algumas políticas públicas específicas tenham sido implementadas nos últimos anos para aumentar o acesso dos estudantes à rede.
Ademais, discrepâncias no acesso e uso por mulheres e homens também foram observadas na pesquisa, bem como a acessibilidade para pessoas com deficiência. Embora a Lei de Inclusão Brasileira e o Marco Brasileiro de Direitos Civis para a Internet defina uma referência clara para o governo e o setor empresarial nesse campo, em nenhum caso acessibilidade é ainda uma realidade.
Assim, verifica-se que no Brasil a geografia da internet distribui-se de acordo com o desenvolvimento desigual das infraestruturas tecnológicas, da riqueza e da educação, ou seja, a internet está cada vez mais presente nos espaço do poder, seja ele político, econômico ou científico-cultural, fazendo coincidir a sua oferta com a geografia do desenvolvimento e do poder.
Internet, direito à informação e participação democrática
Segundo Manuel Castells, em sua obra “Galáxia da Internet: reflexões sobre a internet, negócios e sociedade”, a Internet é de fato uma tecnologia da liberdade – mas pode libertar os poderosos para oprimir os desinformados, pode levar à exclusão dos desvalorizados pelos conquistadores do valor.
Observa-se que as oportunidades e os riscos do mundo tecnológico e conectado podem ser o espelho, e geralmente o são, das escolhas que dirigem o processo social em sua amplitude econômica e cultural. Se a tecnologia é também um modo de produção, de coisas e de sujeitos, ela é também um modo de organizar, perpetuar ou alterar as relações sociais existentes.
Desenha-se, assim, uma mudança profunda nas relações pessoais e institucionais, na infraestrutura básica, na economia e na cultura avançando, ora rompendo fronteiras antes intransponíveis, ora reforçando a desigualdade de acesso aos meios que garantem uma sociedade de informações.
Para sair realmente do “efeito bolha”, que nos engessa no espaço e tempo e exige que reencontremos o rumo para prosseguir, é essencial que reconheçamos que as desigualdades do mundo off-line são reproduzidas no mundo on-line, e, por isso, precisamos assumir a responsabilidade de pensar em uma participação inclusiva nas atividades humanas realizadas no contexto da internet.
Será que todas as atividades realizadas presencialmente podem ser realizadas de forma virtual sem prejuízos? Até que ponto as tecnologias digitais podem substituir a interação humana nos espaços públicos e privados? Será que as decisões políticas, econômicas e sociais, entre outras, podem ser orientadas e formalizadas em um mundo virtual?
A reflexão sobre este tema surge a partir de duas notícias no contexto territorial do Rio grande do Norte: a primeira foi a de que o município de São Gonçalo do Amarante – que faz parte da Região Metropolitana de Natal/RN (RMNatal)– realizou no dia 07 de abril de 2020 uma audiência “pública” online para apresentar e aprovar o diagnóstico relativo à fase de leitura da cidade do Processo de Revisão de seu Plano Diretor. A segunda notícia vem do município de Natal/RN que publicou no dia 06 de maio de 2020 o retorno da revisão do Plano Diretor – suspenso desde meados do mês de março em razão de recomendações do Ministério Público baseadas nos decretos locais que proíbem a aglomeração de pessoas durante a pandemia – e prevê a ocorrência de dois eventos ( Pré-Conferência e Conferência Final) por meio virtual.
A ideia aqui não é levantar bandeiras contra os avanços tecnológicos e a internet, muito pelo contrário, é aceitar os desafios propostos pelo “novo tempo”, que impõe o uso dessas ferramentas digitais de forma universal, e tentar avançar nos estudos e na experiência prática relacionados a sua aplicação no direito urbanístico, planejamento urbano e ciência política. Está posta a reflexão para que possamos encontrar, por meio das novas tecnologias e da internet, formas de luta dirigidas a redução das desigualdades e afirmação das relações sociais fundadas na legitimidade, transparência e justiça social.
O princípio da participação social direta estabelecida pela Constituição brasileira preconiza que se deve respeitar a heterogeneidade dos participantes para o cumprimento desse comando constitucional: é preciso garantir uma maior participação popular em todas as etapas do processo decisório, de forma a não caracterizar apenas o referendo, execução e sugestão por parte do agente estatal.
Observa-se que o direito à informação é meio que permite ao cidadão condições para tomar decisões relativas às políticas/medidas que devem ser executadas para garantir o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade.
Trata-se de um direito reconhecido e consagrado por diversos instrumentos normativos de direitos humanos internacionais, a exemplo do artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), o artigo 19 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966), o artigo 13 da Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos e o artigo 10 da Convenção Europeia de Direitos Humanos (1950).
No Brasil o direito à informação integra de forma expressa o rol de direitos fundamentais enumerados no artigo 5º da Constituição Federal e inciso XXXIII, o qual estabelece que “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”.
As audiências públicas e a participação popular em tempos de covid-19
No contexto das audiências públicas e de todo o processo que envolve a revisão do Plano Diretor de ordenamento territorial é importante frisar que a participação pressupõe apropriação do conhecimento sobre as informações inerentes à vida das cidades e dos municípios?, tais como serviços, planos, recursos, sistemas de gestão, formas de uso e ocupação do solo urbano.
Em tempos de isolamento social e covid-19 precisamos refletir: Esse é o momento para dar continuidade a processos de elaboração e revisão de Planos Diretores? Ou ainda, os trabalhos de elaboração e revisão de Plano Diretores podem ser realizados remotamente, por meio de videoconferências? A municipalidade tem capacidade operacional para realizar esse tipo de audiência pública virtual e garantir a efetiva participação dos seus cidadãos?
O uso de ferramentas virtuais como fóruns, formulários on-line, redes sociais, entre outras, é visto como algo positivo e, sempre que possível, deve ser estimulado como forma de avançar na gestão democrática das cidades, pois contribui para aumentar a publicidade, a transparência e a eficiência da administração pública, além de ser uma ferramenta complementar à participação social direta. Entretanto, quando se converte em única forma de garantir o chamado processo participativo, sob alegação de a revisão do Plano Diretor “precisa continuar”, mesmo não sendo está uma atividade essencial, se faz necessário ponderar…
Sim, são diversas e multifacetadas as formas de exclusão e desigualdade no Brasil e no mundo. Em nosso contexto, pode-se dizer que existem pessoas nos Municípios da RMNatal que não possuem computador em casa, embora provavelmente quase todos tenham acesso à internet, pelo menos por meio de celulares smartphones, os quais, por seu turno, não substituem computadores, necessários para os complexos fins de análise de diagnóstico e leitura de uma cidade. A qualidade do sinal de internet, bem como a resolução de seus equipamentos também podem ser um obstáculo. Somam-se todas as dificuldades e fragilidades “técnicas” e “operacionais” inerentes ao próprio processo, sem definição de metodologias claras e falhando na capacitação do cidadão comum, de modo a assegurar a participação efetiva, seja no ambiente on-line ou off-line. Além disso, as dificuldades dos cidadãos nesse momento não acabam por aí.
Para os mais pobres, não é o atraso na revisão do Plano Diretor que gera mais apreensão neste momento, mas a possibilidade de não conseguirem sobreviver em razão da eventual descontinuidade de políticas de assistência social (saúde, alimentação, moradia, auxílios financeiros etc.). Tudo aquilo que parece natural a políticos que representam os interesses dos segmentos sociais de média e alta rendas não é necessariamente natural para a maior parte da população. Será que grande parte da população, nesse período, conseguirá manter os custos de serviço de internet e manutenção de seus aparelhos, caso os tenha? Fazer com que a população participe de audiências públicas on-line sem garantir meios gratuitos de acesso não seria, também, transferir a responsabilidade da garantia da participação?
Deixamos essas questões para que possamos refletir. Juntos, enfrentaremos esse período desafiador. Com solidariedade e empatia, podemos encarar o que está por vir. Afinal, não podemos querer que as coisas mudem, se sempre fazemos o mesmo.
Ana Mônica Medeiros Ferreira é Advogada, Doutora em Ciências Sociais (UFRN), Professora do curso de Direito (UERN e UNIRN) e colaboradora do Fórum Direito à Cidade UFRN.
Miss Lene Pereira da Silva é Arquiteta, Mestre em Arquitetura e Urbanismo (UFRN), Professora do curso de Arquitetura e Urbanismo (UNIRN) e colaboradora do Fórum Direito à Cidade UFRN
Érica Milena Carvalho Guimarães Leôncio é Advogada, doutoranda em Estudos Urbanos e Regionais (PPEUR/UFRN) e colaboradora do Fórum Direito à Cidade UFRN e membro da Rede BrCidades.
Ruth Maria da Costa Ataíde é Arquiteta e Urbanista, Doutora em Pensamiento Geografico y Organización del Territorio (Universidade de Barcelona), Professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo e Programa de Pós-graduação (Darq e PPGAU/UFRN) e coordenadora do Fórum Direito à Cidade UFRN.