A hora e razões para um novo sistema financeiro

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A inflação aumenta e cresce no Ocidente a pressão por alta dos juros. Não funcionará, e é explosivo. Há alternativa para reduzir os preços e redistribuir a riqueza: ampliar crédito às sociedades e à produção, por meio de bancos públicos

Por Ellen Brown, no ScheerPost | Tradução: Antonio Martins

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Por Antonio Martins

O Federal Reserve (Fed), banco central norte-americano está entre a cruz e a espada. A inflação cresceu 7% em 2021, o índice mais alto em 40 anos, uma tendência que o Fed agora reconhece não ser “transitória”. A teoria convencional é que a inflação se deve a muito dinheiro em busca de muito poucos bens, de modo que o Fed está sob forte pressão para “apertar” ou reduzir a oferta de dinheiro. Suas ferramentas convencionais para este fim são diminuir a compra de ativos e aumentar as taxas de juros. Mas a dívida corporativa aumentou em US$ 1,3 trilhão desde o início de 2020; portanto, se o Fed aumentar as taxas, é provável que surja uma onda maciça de inadimplência. De acordo com o consultor financeiro Graham Summers em um artigo intitulado “O Fed pensa em acender fósforos perto de uma bomba de dívida de US$ 30 trilhões“, o mercado de ações pode entrar em colapso e despencar até 50%.

Ainda mais em risco estão as pequenas e médias empresas (PMEs) que são a espinha dorsal da economia produtiva, empresas que precisam de crédito bancário para sobreviver. Em 2020, fecharam, nos EUA, 200 mil empresas a mais do que nos anos normais pré-pandêmicos. As PMEs classificadas como “não essenciais” sofreram grandes restrições em sua capacidade de fazer negócios, enquanto as grandes corporações internacionais permaneceram abertas. Aumentar as taxas de juros sobre as PMEs sobreviventes poderia ser o golpe final.

Reduzir a demanda ou aumentar a oferta?

O argumento para aumentar as taxas de juros é que isso reduzirá a demanda por crédito bancário, que, reconhece-se agora, tornou-se a principal fonte de criação de dinheiro novo. Em 2014, o Banco da Inglaterra registrou em seu relatório do primeiro trimestre que 97% da oferta de dinheiro do Reino Unido foi criada pelos bancos, ao fazer empréstimos. Nos EUA, o número não é tão alto, mas bem mais de 90% da oferta de dinheiro também é criada por empréstimos bancários.

Não se sabe se o aumento das taxas de juros reduzirá os preços em uma economia com problemas de abastecimento. A escassez de petróleo e gás natural, a escassez de alimentos e as rupturas na cadeia de abastecimento são os principais fatores que contribuem para os preços elevados de hoje. Aumentar as taxas de juros prejudicará, e não ajudará, os produtores e distribuidores desses produtos, ao aumentar seus custos de empréstimo. Como observou a senadora e economista canadense Diane Bellemare:

O aumento das taxas de juros pode esfriar a demanda, mas os altos preços de hoje estão fortemente ligados a questões de fornecimento – mercadorias que não chegam aos fabricantes ou varejistas de forma previsível, e mercados globais incapazes de reagir com rapidez suficiente às mudanças de gosto dos consumidores.

… Um foco único na inflação poderia levar a um aumento das taxas de juros numa época em que o Canadá [e os EUA] deveriam estar aumentando sua capacidade de produzir mais bens, e fornecendo aos varejistas e consumidores o que eles precisam.

Ao invés de reduzir a demanda, precisamos de mais oferta disponível localmente; e para financiar sua produção, o dinheiro do crédito precisa aumentar. Quando a oferta e a demanda aumentam juntas, os preços permanecem estáveis, ao mesmo tempo em que o PIB e a renda sobem.

É o que argumenta o professor. britânico Richard Werner, um economista nascido na Alemanha que inventou o termo “flexibilização quantitativa” (QE) quando trabalhou no Japão nos anos 90. Os bancos japoneses haviam turbinado a demanda por moradias. Isso elevou os preços dos imóveis a níveis insustentáveis, até que o mercado inevitavelmente caiu e puxou a economia para baixo. O QE que Werner prescreveu não foi a criação maciça de dinheiro para compra de ativos financeiros, como vemos hoje. Ao contrário, ele recomendou o aumento do PIB, injetando dinheiro na economia real e produtiva; e é isso que recomenda para a crise econômica de hoje.

Como financiar a produção local

As PMEs constituem o grosso do setor privado de quase todas as economias do mundo. Apesar das perdas maciças decorrentes da pandemia, nos Estados Unidos ainda havia 30,7 milhões de pequenas empresas em dezembro de 2020. As pequenas empresas são responsáveis por 64% dos novos empregos; no entanto, na maior parte dos setores industriais, o crescimento da produtividade está substancialmente abaixo dos padrões estabelecidos na Alemanha, e muitas PMEs americanas não são suficientemente produtivas para competir com as vantagens de custo dos chineses e outros concorrentes de baixos salários. Por quê?

Werner observa que a Alemanha exporta quase tanto quanto a China, embora a população alemã represente apenas 6%. Os chineses também têm vantagens de salários mas baixos. Como as pequenas empresas alemãs podem competir e as empresas americanas não podem? Werner credita o fato aos 1.500 bancos alemães sem fins lucrativos ou comunitários, o maior número do mundo. Setenta por cento dos depósitos alemães estão nesses bancos locais – 26,6% em bancos cooperativos e 42,9% em bancos de poupança públicos chamados Sparkassen, que estão legalmente limitados a empréstimos em suas próprias comunidades. Juntos, estes bancos locais fazem mais de 90% dos empréstimos às PMEs. A Alemanha tem mais de dez vezes mais bancos envolvidos em empréstimos para PMEs do que o Reino Unido, e as PMEs alemãs são líderes do mercado mundial em muitos setores.

Os pequenos bancos emprestam a pequenas empresas, enquanto os grandes bancos emprestam a grandes empresas – e a grandes especuladores financeiros. Os bancos comunitários alemães não foram afetados pela crise de 2008, diz Werner. Por isso, foram capazes de aumentar os empréstimos às PMEs em seguida. Como resultado, não houve nenhuma recessão alemã e nenhum aumento no desemprego.

Werner também atribui o sucesso da China a sua grande rede de bancos comunitários. Sob Mao, o país possuía um único sistema bancário nacional centralizado. Em 1982, guiado por Deng Xiaoping, reformou seu sistema monetário e introduziu milhares de bancos comerciais, incluindo centenas de bancos cooperativos. Seguiram-se décadas de crescimento de dois dígitos. Também privilegiou-se a economia real: a criação de crédito bancário nocivo, para transações de ativos e consumo foi suprimida, enquanto o crédito produtivo foi incentivado.

As recomendações da Werner para as condições econômicas atuais são reformar o sistema monetário. Proibir o crédito bancário para transações que não contribuem para o PIB. Criar uma rede de muitos pequenos bancos comunitários, que emprestem para fins produtivos e retornem todos os ganhos à comunidade. Tornando o comportamento bancário transparente, responsável e sustentável. Ele é presidente do conselho do Banco Comunitário de Hampshire, lançado em 2021, que estabelece um novo modelo. Não há pagamentos de “bônus de desempenho” ao pessoal, apenas salários modestos comuns. O crédito é concedido principalmente para PMEs e para construção de moradias (hipotecas buy-to-build). A propriedade está nas mãos de uma instituição de caridade local, que age em benefício das pessoas do município: metade dos votos ficam nas mãos das autoridades locais e universidades, que são seus investidores.

Bancos Públicos nos EUA: o sucesso de Dakota do Norte

Esse modelo – cortar os intermediários e estimular bancos comunitários, para criar crédito à produção local – também está subjacente ao sucesso do centenário Banco do Dakota do Norte (BND), o único banco estatal estadunidense. Dakota do Norte é também o único estado que escapou da recessão de 2008-09, tendo um orçamento que nunca entrou no vermelho. O estado tem quase seis vezes mais bancos locais per capita do que o país em geral. O BND não compete com esses bancos comunitários, mas faz parceria com eles – um arranjo muito produtivo para todas as partes.

Em 2014, o Wall Street Journal publicou um artigo afirmando que a BND era mais lucrativo até mesmo do que os gigantes JPMorgan Chase e Goldman Sachs. O autor do texto creditou o fato ao boom petrolífero do Dakota do Norte, mas ele se transformou em fracasso naquele mesmo ano, enquanto o BND continuou a reportar lucros recorde. Nos últimos 19 anos, a BND obteve uma média de 20% de retorno sobre o patrimônio líquido, muito superior ao JPMorgan Chase e Wells Fargo, onde os governos estaduais norte-americanos normalmente colocam seus depósitos. De acordo com seu relatório anual de 2020, em 2019 o BND havia completado 16 anos de lucros recordes.

Seu retorno de 15% em 2020, embora não tão bom, ainda era considerável, considerando a crise econômica que atingiu o país naquele ano. O BND teve a maior porcentagem de beneficiários do Plano de Proteção da Folha de Pagamento per capita de qualquer estado; triplicou seus empréstimos para os setores comercial e agrícola em 2020; e reduziu sua taxa de juros fixos sobre empréstimos estudantis em 1%, reduzindo os pagamentos em média em US$ 6.400, ao longo da duração do empréstimo. A BND fechou 2020 com US$ 7,7 bilhões em ativos.

Por que o BND é tão lucrativo, já sem as receitas do petróleo? Seu modelo comercial permite que ele tenha custos muito mais baixos do que outros bancos. Não há investidores privados, que desviam seus lucros a curto prazo. Não há executivos bem pagos. Não é preciso anunciar e, até recentemente, havia apenas uma agência, agora ampliada para duas. Por lei, todas as receitas do Estado são depositadas na BND. O banco faz parcerias com bancos locais em empréstimos, ajudando na capitalização, liquidez e regulamentos. As economias do BND são devolvidas ao estado ou repassadas aos mutuários locais sob a forma de taxas de juros mais baixos.

O que o Fed poderia fazer agora

As Sparkassen e o BND são grandes modelos de bancos públicos, mas sua implementação leva tempo, e o Fed está sob pressão para lidar com uma crise de inflação. O professor Werner preocupa-se com a centralização e pensa que bancos centrais são dispensáveis; mas enquanto os tivermos, podemos muito bem colocá-los a serviço da economia real.

Em setembro de 2020, Saqib Bhatti e Brittany Alston do Centro de Atuação em Raça e Economia [Action Center on Race and the Economy] propuseram um plano para estimular a produção local que poderia ser implementado pelo Fed imediatamente. Ele poderia fazer empréstimos sem juros diretamente aos governos estaduais e locais, para fins produtivos. Para melhor se adequarem às políticas que hoje prevalecem no Fed, talvez estes empréstimos pudesse cobrar juros de apenas 0,25% – como os que são feitos aos bancos privados através de sua janela de desconto e aos investidores do mercado de através de sua facilidade permanente de desconto.

O documento de Bhatti/Alston tem como título “Como os os governos locais e estaduais podem economizar mais de US$ 160 bilhões ao ano, reduzindo o pagamento de juros aos investidores“. Os autores escreveram: “Em vez de fazer mais cortes em serviços críticos nos orçamentos públicos, é hora de cortarmos os lucros exorbitantes que Wall Street faz a partir de nossos municípios”.

Eles observaram que, nos EUA, os pagamentos de juros sobre a dívida municipal transferem mais de US$ 160 bilhões por ano dos contribuintes para investidores mais ricos e os bancos em Wall Street. Esses fundos poderiam ser direcionados para uso público mais produtivo se o Federal Reserve disponibilizasse empréstimos de longo prazo de custo zero a todos os governos estaduais e locais e agências governamentais. Com esse dinheiro, eles poderiam refinanciar dívidas antigas e contrair empréstimos para novos projetos de infraestrutura de longo prazo, pois cancelariam quase todos os seus pagamentos de juros. Os juros e as taxas normalmente representam 50% do custo da infraestrutura. A redução da taxa de juros quase a zero poderia estimular um boom nesses projetos desesperadamente necessários. A Sociedade Americana de Engenheiros Civis (ASCE) estima em seu relatório de 2021 que US$ 6,1 trilhões são necessários apenas para reparar a infraestrutura do país.

Quanto ao risco de que os governos estaduais e locais não paguem suas dívidas, Bhatti e Alston alegam que ele é praticamente zero. Os Estados não estão legalmente autorizados a decretar inadimplência, e cerca da metade deles não permite que suas cidades façam o mesmo. Os autores escrevem:

De acordo com o Moody’s Investors Service, a taxa acumulada de inadimplência de dez anos para títulos municipais entre 1970 e 2019 foi de apenas 0,16%, em comparação com 10,17% para títulos corporativos, o que significa que os títulos corporativos tinham uma probabilidade 63 vezes maior de inadimplência. (…) Os títulos municipais como um todo eram investimentos mais seguros do que o 3% dos títulos dos títulos corporativos mais seguros. (…) Os títulos municipais norte-americanos são investimentos extremamente seguros, e as taxas de juros que a maioria dos tomadores de empréstimos dos governos estaduais e local são forçados a pagar são injustificadamente altas.

… As principais agências de avaliação de risco têm um longo histórico de utilização destes instrumentos para impulsionar uma agenda de austeridade e exigir cortes nos serviços públicos .(…) Além disso, elas discriminam os tomadores de empréstimo municipais, ao dar-lhes classificações de crédito mais baixas do que às corporações – que têm uma probabilidade significativamente maior de inadimplência.

… Os mesmos bancos que são grandes subscritores de títulos também têm um histórico de conluio e manipulação de ofertas no mercado de títulos municipais. (…) Vários bancos, inclusive JPMorgan Chase e Citigroup, declararam-se culpados de acusações criminais e pagaram bilhões em multas aos reguladores financeiros.

… Não há razão para que bancos e portadores de obrigações possam lucrar com esta infraestrutura básica se o Federal Reserve pudesse fazê-lo gratuitamente.

Para garantir o reembolso e desencorajar o excesso de empréstimos, dizem Bhatti e Alston, o Fed poderia adotar regulamentos como exigir que qualquer ente público tomador de empréstimo que falte a um pagamento, tribute automaticamente os residentes acima de um determinado limite de renda. Limites de empréstimo também poderiam ser estabelecidos. A politização dos empréstimos poderia ser evitada, tornando-os disponíveis indiscriminadamente para todos os mutuários públicos dentro dos limites estabelecidos. Outra possibilidade poderia ser mediar os empréstimos através de um Banco Nacional de Infraestrutura.

Tudo isso poderia ser feito sem nova legislação. O Federal Reserve tem autoridade estatutária para emprestar a municípios por um período de até seis meses. Ela poderia simplesmente concordar em rolar esses empréstimos por um período fixo de anos. Bhatti e Alston observam que, sob a Lei CARES 2020, o Fed recebeu permissão para fazer até US$ 500 bilhões em empréstimos de longo prazo a mutuários municipais, mas não usou essa autoridade na medida do permitido. Os empréstimos foram limitados a não mais de três anos, e a taxa de juros cobrada era tão alta que a maioria dos municípios podia obter taxas mais baixas no mercado aberto de títulos municipais.

As empresas privadas, que os autores mostram ter 63 vezes mais chances de inadimplência, pudeream contar com condições muito mais generosas sobre suas dívidas. O governo federal também disponibilizou US$ 10,4 trilhões em resgates para o setor financeiro após a crise financeira de 2008, uma soma que é 2,5 vezes o tamanho de todo o mercado de títulos municipais dos EUA.

Dominar o fogo sem incendiar o galpão

Brincar com fósforos que poderiam desencadear uma bomba de dívida de 30 trilhões de dólares é obviamente algo que o Fed deve evitar. O professor Werner provavelmente argumentaria que o erro político, como no Japão da década de 1980, foi injetar crédito para para ativos especulativos, inflacionando os preços dos ativos. A mangueira de incêndio de liquidez do Fed precisa ser direcionada para a produção local. Isto pode ser feito através das comunidades locais ou de bancos públicos, ou por meio empréstimos a juros quase nulos aos governos estaduais e locais, talvez mediados por um Banco Nacional de Infra-estrutura.

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