Artigo: A nova república dos coronéis

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Um bando de privilegiados acusa milhões de pobres de serem os responsáveis por uma suposta quebra do Estado, os corta do orçamento federal e entrega o patrimônio do pré-sal a empresas estrangeiras.


As palavras têm estranhos destinos. Por exemplo: a palavra “capitão”, no Brasil, tem ressonâncias libertárias, revolucionárias. Sepé Tiaraju, o corregedor da Missão de São Miguel, no noroeste gaúcho do século 18, líder da resistência dos guaranis contra Espanha e Portugal, ficou na História como o “Capitão Sepé”. Luís Carlos Prestes, da imortal coluna que levou seu nome, era capitão. Ao escolher o nome para seu romance sobre a gurizada rebelde de Salvador, Jorge Amado batizou-o de “Capitães da Areia”. Lamarca era capitão.


Já a palavra “coronel” ficou associada a poder discricionário. Coronéis eram os latifundiários do Império e da República Velha. Que sobreviveram até o regime de 1964, que apoiaram. Coronéis eram também os signatários do manifesto que levou seu nome, datado de 15 de fevereiro de 1954. Enorme, o manifesto enumera uma série de problemas que vêm assolando o Exército, como falta de verbas e ameaça da quebra da hierarquia insuflada por ideologias nefastas. Mas já para o final, vem a pérola:


“E a elevação do salário mínimo que, nos grandes centros do país, quase atingirá o dos vencimentos máximos de um graduado, resultará, por certo, se não corrigida de alguma forma, em aberrante subversão de todos os valores profissionais, destacando qualquer possibilidade de recrutamento para o Exército de seus quadros inferiores”.


Assinaram 42 coronéis e 39 tenente-coronéis. Eram a vanguarda do ressentimento da classe média contra a promoção do proletariado recém-nascido na República Escravocrata do Brasil, promovida pelo governo “populista” do segundo (ou seria terceiro, quarto, quinto?) Vargas. Sob o palavreado altissonante das altas funções do Exército, o que medra é a amargura de sentir “privilégios” de soldo ameaçados.


O ressentimento é um móvel político poderoso. Foi mobilizado por Hitler na Alemanha dos anos 30, com sucesso.


E está sendo mobiliado com sucesso hoje, pelos golpistas de 2016. Só que os coronéis hoje são outros. São os arautos do ódio contra petistas – contra a ascensão dos pobres na escala social e no orçamento do governo federal – na mídia conservadora e oligárquica. São os agentes dispersos no judiciário e na polícia federal que miram implacavelmente os petistas e levam de roldão alguns outros colarinhos brancos que submergem no tsunami pseudo-moralista que promovem.


A ascensão do ressentimento como padrão de comportamento político vem trazendo à tona o que o Brasil tem de pior: racismo, misoginia, discriminação, ódios regionais (sobretudo contra nordestinos), sexismo. Ninguém quer olhar para “o outro lado”. A falta de diálogo é generalizada, e também atinge gente de esquerda. Mas seu estilo maciço se manifesta pela e à direita, sem dúvida.


Agentes do poder judiciário, em sua tenaz perseguição – estilo lawfare – contra Lula e demais petistas ao alcance de sua mão se colocam como líderes e arautos deste ressentimento de classe que por vezes se manifestou nas ruas durante protestos pedindo o impeachment da presidenta Dilma sob a forma de reclamações sobre o custo, hoje, de uma empregada domestica… e a obrigação de pagar-lhe… um salário mínimo, retomando o motivo profundo do antigo Manifesto dos Coronéis, de 1954.


O desmanche do projeto de um estado do bem-estar social (porque era ainda um projeto) promovido por Temer e quadrilha vai na mesma direção. Um bando de privilegiados acusa milhões de pobres de serem os responsáveis por uma suposta quebra do Estado Nacional, quebra esta que não existe, e os corta impiedosamente de todas as maneiras imagináveis do orçamento federal, inclusive do futuro, não só pelo congelamento dos investimentos sociais por 20 anos, mas também pela entrega do patrimônio do pré-sal (e de outros) e de seus benefícios a empresas estrangeiras. A desculpa invocada pelo senador Serra para justificar esta entrega – dizendo que é preciso acelerar a extração diante da possibilidade de substituição dos combustíveis fósseis, e de que a Petrobras não seria capaz disto – soa como escárnio irrisório.


Assim vivemos novo episódio daquilo que se chamou a “República Velha”, ou “dos Coronéis”.


Que acabou na Revolução de 30, é bom lembrar.


 Flávio Aguiar é jornalista e professor aposentado de Literatura Brasileira da USP.


Source: SAIU NA IMPRENSA

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