Chile: 90% dos direitos sobre a água estão com mineração e agronegócio

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Entenda como se deu o processo de privatização das águas no Chile

Ativista chilena alerta para as consequências sociais do controle das águas pela iniciativa privada

Lu Sudré

Tradução: Luiza Mançano

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

Herança da ditadura de Augusto Pinochet, a privatização das águas no Chile traz consequências diretas para a população até hoje. A experiência do país vizinho é a mais drástica no que tange a entrada do capital privado no controle das águas e dos serviços de saneamento básico, caminho que se fortalece no Brasil a partir da aprovação do novo marco.

Em entrevista ao Brasil de Fato, a chilena Deisy Avendaño, integrante do Movimento de Afetados por Represas (MAR), que atua em toda a América Latina, faz uma reconstrução histórica e detalhada do processo que impede o acesso à água, seja dos mares ou nas torneiras, para as populações mais vulneráveis do país.

Segundo a ativista, o Chile é o único país do mundo que tem quase 100% de sua água privatizada de forma perpétua. Desenvolvido ao longo das décadas de 1970 e 1980, o chamado Código de Águas instituiu a separação dos direitos ao uso da água do uso da terra, permitindo a compra e venda do bem comum como qualquer mercadoria mediante transações financeiras, além da própria gestão do saneamento.

“Inescrupulosamente, todas as empresas relacionadas ao setor da água, tanto para uso humano quanto para uso industrial, mantêm uma superexploração dos rios e lagos. Muitas das indústrias não recebem sanções pela contaminação da água e as comunidades nas quais há exploração de recursos hídricos são obrigadas a enfrentar o ‘saque’ da água, com soluções desumanas”, afirma Avendaño.

“Hoje, 90% dos direitos de aproveitamento da água estão nas mãos de empresas mineradoras e agroexportadoras, enquanto praticamente 100% dos direitos de aproveitamento da água de uso não consuntivo (não consumível, como a pesca ou a navegação) estão nas mãos de empresas transnacionais como a empresa espanhola Endesa”, complementa.

Ainda de acordo com a também integrante da Rede Regional Contra Mineradoras na Patagônia, existem cerca de 47 mil famílias chilenas em situação precária em relação ao acesso à água potável, declarado como um direito fundamental pela Organização das Nações Unidas (ONU).

“Algumas estão conectadas ilegalmente à redes que não garantem o consumo de água, principalmente sem sistemas de esgoto, o que piora a qualidade de vida devido à falta de higiene ou, em muitos casos, recebe frações de água muito inferiores às quantidade necessária para executar tarefas simples, como cozinhar e higiene pessoal”, relata.

Contra a privatização desenfreada também em outros setores, como saúde e transporte, protestos populares eclodiram em outubro de 2019 no país. Uma das principais reivindicações da mobilização foi o fim da “Constituição de Pinochet” e de suas políticas.

Uma consulta pública sobre a questão estava prevista inicialmente para abril deste ano, mas foi adiada por conta da pandemia do novo coronavírus. Agora, o plebiscito que decidirá sobre a abertura de um novo processo constituinte está confirmado para o dia 25 de outubro.

“Embora eles sempre nos disseram que privatizar tudo melhoraria nossa qualidade de vida, hoje estamos em grandes lutas sociais para recuperar o que os empresários usurparam de nós”, afirma Deisy Avendaño.

Confira a entrevista na íntegra. 

Brasil de Fato –  Quais fatores históricos sociais permitiram que as águas do Chile passassem por esse processo de privatização?

Deisy Avendaño – O Chile é o único país do mundo que tem quase 100% de sua água privatizada de forma perpétua. Nosso país carrega nos ombros uma história que fala sobre sangue, abusos, colonização, armas, presos desaparecidos e uma ditadura que se perpetuou de forma tão extrema que até hoje somos regidos pela constituição herdada do ditador Augusto Pinochet.

A ditadura chilena, como muitas outras do mundo, impôs um pensamento fascista através das armas, que terminou com milhares de presos desaparecidos, valas comuns cheias de pessoas de todas as idades, enquanto aqueles que violaram os direitos humanos foram parar em prisões de luxo ou estão livres, e com uma intensa política de privatização dos direitos básicos para a sobrevivência. As famílias mais poderosas e corruptas do nosso país começaram a fazer fortuna no processo de privatização iniciado na ditadura, marcando claramente a economia no sentido de um caminho extrativista. Assim como a educação e o acesso à saúde, a água é um direito consagrado como tal na Constituição, mas de livre comercialização para os mercados e indústrias, públicas e privadas.

O ex-presidente Eduardo Frei Ruiz Tagle, por exemplo, privatizou as águas do sistema de saneamento e Ricardo Lagos Escobar terminou esta privatização. Apesar de várias leis tratarem vagamente de impulsionar um caminho para normatizar o uso da água, isso não foi possível até 1951, quando foi promulgado o 1º Código de Águas cuja origem estava baseada na concessão administrativa estatal e, uma vez adquirida, as águas passavam a ser uma propriedade privada.

Também foi criada a Direção Geral de Águas (DGA), encarregada de administrar a entrega de direitos provisórios da água a um demandante, ou revogá-los no caso de que o solicitante não especificasse o uso no momento da solicitação, ou porque não fizesse o uso desses direitos durante 5 anos. Em ambos os casos, eles deveriam ser devolvidos ao Estado.

O segundo regulamento, conhecido como o “Código de Águas de 1967”, impulsionado no governo de Eduardo Frei Montalva, declarava que todas a água do país eram um bem nacional para uso público, inclusive a que estava privatizada, além de estabelecer que as concessões de água não poderiam ser comercializadas ou intercambiadas de forma privada, nem desvinculadas do território onde foram concedidas, sem a aprovação do Estado.

Durante a ditadura militar, o Estado começa a perder suas competências. Uma das primeiras medidas que marca o começo da privatização foi a revogação do código 67, e foi estabelecido um novo código, compatível com a nova ordem política e econômica baseada no livre-mercado.

Em 1976, foi criada a Comissão Estrutural, que teve como principal característica impulsionar uma estratégia de incentivo para investimentos privados, introduzir na Constituição dos anos 80 os poderes da iniciativa privada, outorgando a propriedade dos usos dos recursos hídricos e não sobre as águas que estão protegidas constitucionalmente.

Em 1979, nasce o Decreto de Lei N°2.603 que, em seu primeiro artigo, assinala os “Direitos particulares sobre as águas, reconhecidos ou constituídos em conformidade com a lei, outorgando a seus titulares a propriedade dessas”. Já o segundo artigo determina a plena competência do ditador Pinochet para estabelecer as Normas do Regime Geral das Águas.

A partir de 1981, começa o processo mais severo da privatização da água, em que se estabelece o aproveitamento desta mediante o código que se mantém vigente até hoje e que indica que as águas são um bem de uso comum para a sociedade, mas também um bem econômico, como um imóvel, dividindo a propriedade da água do domínio da terra, exigindo do Estado as concessões dos direitos de aproveitamento da água a setores privados, de maneira gratuita e perpétua. Dessa forma, eliminou-se o pagamento de impostos aos direitos da água, além de criar um acordo sobre o leilão público de direitos.

As principais implicações do Código de Águas no Chile ganham relevância porque separa os direitos da água dos direitos de terra; porque entrega de forma gratuita e perpétua aos primeiros solicitantes e não prioriza nem o uso nem o consumo da água para pessoas simples, o que permite atualmente a compra e a venda da água como qualquer mercadoria mediante transações.

Então, mesmo com a redemocratização, não houve uma mudança nessa lógica?

Para o retorno da democracia, os governos da chamada “Concertación” (coalizão de partidos pela democracia) continuaram engordando os bolsos das empresas privadas e perpetuando a desigualdade no Chile. No governo de Eduardo Frei Ruiz-Tagle (1994-1999) tem início a privatização das empresas provedoras de água. Esval, uma empresa de saneamento básico de Valparaíso, na quinta região do país. Ela foi constituída como sociedade anônima da Corporação de Fomento da Produção (CORFO), ao final da ditadura militar, amparada pela Lei 18.777 que autoriza o Estado a realizar atividades em matéria de água potável e saneamento, e vendeu 35% dos seus direitos, concedidos ao consórcio Enersis-Anglian Water, tornando-se a primeira empresa de saneamento básico privada do Chile.

Posteriormente, tiveram o mesmo destino a Empresa Metropolitana de Obras de Saneamento (EMOS). atualmente Aguas Andinas — uma das principais empresas de saneamento da América Latina, controlada pelo grupo espanhol Agbar — ; na região de Bío-Bío, atualmente a Essbio está controlada pela Southern Cross Capital Management S.A, da Argentina; e, na região dos Lagos, atualmente a Essal também está controlada pela empresa Aguas Andinas.

Para 2012, a Corporação de Fomento da Produção (CORFO) arrematou 40,5% da propriedade da água que mantinha até então e assim todos os processos iniciados no governo de Eduardo Frei Ruiz-Tagle (1994-2000) foram consolidados no governo de Ricardo Lagos Escobar (2000-2006).

Em 2010, o Chile se tornou o primeiro país do mundo a privatizar o mar quando, em 8 de abril, foram publicadas no Diário Oficial as modificações da Lei Geral de Pesca e Aquicultura, que admite as concessões aquícolas possam ser hipotecadas, um projeto impulsionado pelo governo socialista de Michelle Bachelet e promulgado no primeiro governo do atual presidente neoliberal, Sebastián Piñera.

Quais são as consequências diretas para a população nesse processo?

Inescrupulosamente, todas as empresas relacionadas ao setor da água, tanto para uso humano como para uso industrial, mantém uma superexploração dos rios e lagos. Muitas das indústrias não recebem sanções pela contaminação da água e as comunidades nas quais há exploração de recursos hídricos são obrigadas a enfrentar o “saque” da água, com soluções desumanas, posto que aqueles que têm a opção de mudar o código de águas não têm nenhuma iniciativa política neste sentido por fazer parte do grande negócio.

Em nosso país, por exemplo, a agricultura, a mineração e a indústria são os principais consumidores da água doce, enquanto um pouco mais de meio milhão de habitantes tinha sérios problemas de acesso à água potável em 2019.

Atualmente, os principais responsáveis da suposta “escassez hídrica” são os grupos empresariais que controlam toda a economia do país, que estão amparados pelo Código de Águas herdado da ditadura, utilizando, contaminando e explorando, de forma cruel, os recursos hídricos. Madeireiras, mineradoras, monocultivos de abacate, empresas de saneamento, todos protegidos pela Constituição, contribuem enormemente para o crescimento da desigualdade no Chile, já que o atual Código não prioriza, por exemplo, o consumo humano, limitando a água a uma visão produtiva somente.

Hoje, 90% dos direitos de aproveitamento da água de uso consuntivo estão nas mãos de empresas mineradoras e agroexportadoras, enquanto praticamente 100% dos direitos de aproveitamento da água de uso não consuntivo estão nas mãos de empresas transnacionais como a Endesa (empresa espanhola).

É evidente e necessária uma mudança no modelo administrativo que regula as empresas de saneamento, mas mas a mudança é quase impossível se fizermos as contas de que nosso país, desde o momento da privatização nos anos 90, é parte de 26 acordos comerciais com cerca de 62 países, muitos deles investidores que ameaçam com demandas e sanções caso seus negócios sejam afetados ou nas tentativas de modificação das cotas de privatização.

O levante popular de 18 de outubro de 2019 no Chile visibilizou o fracasso do modelo neoliberal e extrativista imposto ao país durante a ditadura e uma das principais demandas da mobilização é que a água passe a ser acessível para as pessoas e não para as corporações, que as comunidades e seus pequenos sistemas produtivos sejam prioritários, já que contribuem de forma sustentável para o abastecimento de alimentos no país, como é o caso dos agricultores.

Atualmente, existem cerca de 47 mil famílias em situação de vulnerabilidade em termos de moradia e acesso a insumos básicos, como energia e água potável. Algumas delas utilizando redes ilegais que não asseguram que a água seja consumível e a maioria sem acesso a esgoto tratado, o que piora a qualidade de suas vidas por falta de higiene. Ou, em muitos casos, recebem quantidades de água inferiores à necessária para realizar tarefas tão básicas como cozinhar e tomar banho.

Os agricultores e camponeses também são afetados pela invasão de madeireiras de cultivo intensivo e monocultivos agrícolas que requerem grandes quantidades de água, fazendo com que pelo menos 47% da população da área rural não tenha acesso permanente e regular à água. 71 mil famílias recebem água por caminhões-pipa, outro setor que mantém seus lucros com com base nesse elemento vital.

Por outro lado, as mineradoras aproveitam as condições atuais de privatização da água comprando grandes quantidades de concessões, utilizando reservas de água doce, principalmente de geleiras e rios que em muitas ocasiões eram utilizados pelas comunidades que habitam esses territórios para consumo pessoal, rega dos cultivos e alimentação de animais de consumo pessoal ou, em alguns casos, áreas de reservas protegidas de água.

A região de Aysén é a 3ª maior reserva mundial de água doce e, apesar da existência da mineração há alguns anos, o aumento de políticas e investimentos que privilegiam este setor colocam em constante perigo e ameaça nossos reservatórios hídricos.

Acontece o mesmo no setor madeireiro, no cultivo de pinus e eucalipto no centro e no sul do país, que exigem grandes quantidades de água, aumentando a escassez de água e aprofundando a desigualdade nos territórios em que se instala, já que passa a controlar o uso e a venda da água, roubando o acesso dos moradores. No setor marítimo, isso limita o trabalho dos pescadores artesanais já que as concessões marítimas estão nas mãos de cinco famílias do Chile.

Os chilenos protagonizaram um grande levante ano passado, justamente contra as políticas neoliberais. Qual a perspectiva para essa mobilização popular? Ela deve se intensificar?

Muitas das denúncias que saíram à luz graças às diferentes organizações sociais, ambientais e comunidades que zelam pela água e pela vida permitiram uma maior conscientização da população, fazendo com que mais pessoas se interessem por temas que antes consideravam irrelevantes.

Não há dúvidas de que a mobilização social de outubro de 2019 deu visibilidade à precariedade a qual estão submetidos aqueles que habitam esta longa porção de terra chamada Chile, abundante e generosa em centenas de bens comuns que as grandes empresas controlam fortemente desde a ditadura. Apesar do nosso próprio processo social, ano passado nos vimos saturados da privação de nossos direitos fundamentais, com defensores da terra assassinados, outros ameaçados e perseguidos por denunciar o negócio da água e a corrupção dos agentes do Estado.

Talvez tenhamos demorado um pouco para reagir mas graças à pressão social, o Chile fala, pela primeira vez, de criar um espaço para alterar a Carta Magna e sepultar Pinochet e sua herança de uma vez por todas. A pressão social foi tão grande que há alguns dias, pela primeira vez na história do nosso país, foi possível fazer um pequeno arranhão no sistema de aposentadorias chilenas, com a votação que aprovou a devolução de 10% dos fundos poupados por milhares de trabalhadores que as AFPs [Administradoras de Fundos de Pensão] desviaram por anos. Como resultado da pressão social, o Chile teve grandes marcos históricos que não foram alcançados antes por não compreender ou não ter informações sobre como os políticos e empresários dia a dia mercantilizam e usurpam nossos direitos de sobrevivência.

Devemos nos manter sempre em constante mobilização social, na batalha e conquista dos nossos direitos, já que a pressão social nos deu a oportunidade de recuperar em pouco tempo o que não pudemos em muitos anos. Esse é um convite não só ao povo irmão do Brasil, mas a todos os povos que enfrentam a selvageria do extrativismo, para que pressionem até alcançar as mudanças que reivindicam, para se atentarem à forma como as leis que regem as nossas vidas e nossos bem comuns são ditadas.

Apesar de que sempre nos disseram que a privatização completa melhoraria nossa qualidade de vida, hoje estamos em uma grande luta social para recuperar tudo que os empresários nos roubaram.

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