Moradia, segurança e nutrição são questões urgentes. Mas a reconstrução do país exigirá espaços de lazer, esportes, educação e cidadania, sobretudo aos jovens desesperançados. De fácil implementação, podem ser essenciais ao direito à cidade
A crise econômica global, que adquiriu contornos trágicos no Brasil, somada aos efeitos da pandemia de Covid-19, impactaram profundamente a sociedade e, em especial, toda uma geração de crianças e jovens. Os aumentos da fome e da insegurança alimentar associados à precariedade na formação escolar (o que inclui problemas na sociabilidade além da educação) nos alertam sobre o impacto desses fatores nesta geração e, portanto, no futuro próximo da nação. No centro dessas questões está a necessidade e o direito de viver em condições dignas de habitabilidade. Evidentemente, isso inclui ter direito a moradia segura, acesso a uma renda mínima, à mobilidade urbana, à saúde e ao saneamento, mas não só. Também há aspectos que vão além e afetam diretamente crianças e jovens como a educação, a nutrição, o lazer e as práticas esportivas, culturais e artísticas.
Propomos aqui a criação de uma rede de equipamentos urbanos (e em bairros rurais) voltados para o desenvolvimento das potencialidades de toda uma geração que assim poderá protagonizar um futuro melhor para ela, para suas comunidades e para o país. Essa possibilidade civilizatória – que não deve ignorar a grave crise ambiental – pode ser adotada como uma marca fundamental de governos municipais e, especialmente, os novos governos estaduais e federal a serem eleitos em outubro.
De acordo com o Estudo Exclusão Escolar no Brasil (UNICEF e CENPEC) havia mais de 5 milhões de crianças e adolescentes, entre 6 e 17 anos, excluídos do acesso à educação em 2020. Destas, 40% tinham entre 6 e 10 anos. De acordo com vários relatórios internacionais (Human Rights Whatch 2021, Banco Mundial 2022), a fome limita a capacidade cognitiva e o desenvolvimento das crianças. A desigualdade de acesso às ferramentas da educação à distância promoveu não apenas uma defasagem educacional e comprometimento do desenvolvimento mental, mas também gerou transtornos de ansiedade e depressão. Apesar de uma melhora no passado recente, os indicadores de educação regrediram durante a pandemia, agravados pela tradicional exclusão urbana e territorial. Estamos falando do direito à cidade e ao desenvolvimento humano. Nos bairros urbanos periféricos, territórios sem leis ocupados por um poder paralelo, o Estado chega por meio da violência policial. Portanto, estamos diante de questões emergenciais mas também questões históricas: salvar uma geração, garantindo seu desenvolvimento humano.
A Conferência Popular pelo Direito à Cidade, realizada em São Paulo entre os dias 3 e 5 de junho, se manifestou em favor de uma agenda combinada, considerando dois grandes grupos de políticas públicas como vetores da transformação social a longo prazo. As de caráter emergencial, que visam atender ao imperativo da sobrevivência, e as de caráter estrutural, que devem se voltar para a inclusão social e o direito à cidade.
O desencontro e a fragmentação entre as políticas para a sobrevivência e aquelas que permitem o desenvolvimento das potencialidades e talentos individuais e coletivos têm produzido um grande mal-estar social no Brasil. Se por um lado hoje a vida está relativamente longeva, por outra, muitas vezes está desprovida de sentido, significado e propósito. Isso, que é a própria materialização das injustiças sociais, tem sido fator de degeneração social ampla e profunda, de violência difusa e proporcionado o ambiente ideal para o fortalecimento da extrema direita.
Como abordar essa nova agenda? Ela cabe no orçamento público?
Sim, nossos estudos mostram que ela é perfeitamente viável do ponto de vista orçamentário. Vamos tomar como exemplo o Sistema Único de Saúde (SUS): nosso sistema de saúde possui uma rede de equipamentos que encontra sustentabilidade orçamentária pelo fato de serem distribuídos conforme um dimensionamento populacional e territorial sustentável. As milhares de Unidades Básicas, UPAs, Hospitais, Maternidades, Policlínicas, Hemocentros são equipamentos normalmente caros, em estrutura, recursos humanos e insumos, mas geram economias futuras, pois os atendimentos de saúde pública proporcionados por eles diminuem as necessidades de potenciais casos mais graves e custosos ao erário.
A rede de equipamentos necessária a iniciar esse grande ciclo de políticas para a cultura, o esporte, o lazer e o acolhimento dos mais vulneráveis, potencialmente capaz de mitigar os graves prejuízos que essa geração de crianças e jovens vem sofrendo é incomparavelmente mais barata do que a que compõe a indispensável Rede SUS. Ela deveria ser iniciada pelos equipamentos mais emergenciais frente ao problema imenso representado pelo risco de termos uma geração perdida. Some-se a isso a importância do resgate em relação à exclusão histórica que atinge a população negra e as mulheres no Brasil.
As iniciativas que propomos, dimensionadas para alcançar os 30% mais pobres, têm a seguinte lógica territorial: a localização dos equipamentos, nas periferias urbanas e bairros rurais, deve seguir indicadores de vulnerabilidade social. Tomemos o exemplo da cidade de São Paulo para esse exercício orçamentário. São Paulo tem uma população aproximada de 12,3 milhões de habitantes. Portanto, teria 4.100.000 pessoas no seu terço mais pobre. Se esse grupo for dividido em agrupamentos populacionais de 20.000 habitantes, alcançaríamos cerca de 205 agrupamentos na cidade. A ideia é oferecer a cada ano, em cada um desses agrupamentos, um novo equipamento: centros poliesportivos, pistas de skate, centros culturais dotados de conchas acústicas, bibliotecas, salas de projeção, espaços para o atletismo em torno dos campos de futebol (muitas vezes os únicos equipamentos esportivos existentes), dentre outros que viessem a ser sugeridos pelas próprias comunidades beneficiárias. Se cada um desses equipamentos custar em torno de R$ 2.500.000,00, um valor que permitiria oferecer equipamentos de até 1.000 m² com alto padrão construtivo, e multiplicando esse montante pelos 205 agrupamentos populacionais de 20.000 habitantes, alcançaríamos um total de R$ 512.500.000 (quinhentos e doze milhões e quinhentos mil reais) por ano, para a cidade de São Paulo. Esse valor corresponde a apenas 0,61% do orçamento total da cidade, que em 2022 foi de 82,7 bilhões de reais.
É verdade que os números acima mostram a realidade de um município poderoso, como é São Paulo. Então, façamos esse mesmo exercício pensando na escala de um Estado. Imaginemos uma situação em que os agrupamentos populacionais fossem determinados em tamanhos variáveis, conforme a população das cidades e a proporção de jovens em situação de maior pobreza. Com base nisso, poderíamos pensar em uma teia de equipamentos desse mesmo tipo, a serem implementados anualmente e espalhados pelo território do Estado. Desse modo, alcançaríamos as novas gerações em todos os rincões mais pobres, por um custo total que, da mesma forma, seria razoavelmente pequeno em relação ao orçamento total do Estado.
Haveria ainda um valor anual de custeio dessas experiências e de recursos humanos
Se pensarmos em uma política que possa integrar as três esferas de governo para sua gestão, o corpo funcional (professores, educadores e técnicos) pode ser facilmente organizado em consonância com as diferentes secretarias de educação, esporte e cultura, dentro de suas agendas e planificações, com seus servidores, racionalizando ainda mais o custo geral desses equipamentos.
Do ponto de vista fundiário, existe a possibilidade de aquisição e disponibilização de terrenos por parte das prefeituras e mesmo dos Estados, como contrapartida a recursos federais para as obras. Considerando que o processo de aquisição da terra, licenciamento e obras pode levar mais de um ano, deve-se vincular essas iniciativas aos orçamentos anuais, iniciando novas obras a cada ano, ao mesmo tempo que se completam as iniciadas no ano anterior. É uma política que deve tornar-se contínua e permanente, independentemente das mudanças de gestão.
Essa proposta tem alguns antecedentes bem sucedidos no Brasil. Em 1982, com a eleição de Leonel Brizola no Rio de Janeiro, Darcy Ribeiro propõe os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), inspirados na Escola Parque de Salvador (1950), concepção de Anísio Teixeira. Os CIEPs ofereciam atividades de educação, esportes, cultura, alimentação, assistência médica, em tempo integral.
A partir de 2002, com a mesma matriz de Anísio Teixeira, a Prefeitura de São Paulo criou a rede de Centros Educacionais Unificados (CEUs). Os CEUs tinham como objetivo “promover uma educação à população de maneira integral, democrática, emancipatória, humanizadora e com qualidade social, Juntando não somente educação, mas também, cultura, esporte, lazer e recreação, possibilitando o desenvolvimento do ser humano como um todo, como pessoa de direitos e deveres e dono de sua história.” Desde sua criação, os CEUs passaram por uma evolução em sua concepção, visando aumentar sua inserção nos territórios onde se localizavam.
Em Fortaleza, o bom exemplo vem de uma rede de proteção social e oportunidades formada por três Centros Urbanos de Cultura, Arte, Ciência e Esporte (Cucas) – Rede Cuca – que são geridos pela Coordenadoria Especial de Políticas Públicas de Juventude e destinados à proteção social e ao desenvolvimento de oportunidades. Mas é em Natal, no Ginásio Arena do Morro em Mãe Luíza, construído e mantido pelo Centro Sócio Pastoral Nossa Senhora da Conceição numa parceria com a escola estadual Dinarte Mariz, que cedeu o terreno, onde esse equipamento mostra a extensão de suas potencialidades. Criado em 2014, o Ginásio vem oferecendo de forma contínua à comunidade de Mãe Luíza o esporte sob a forma de escolinhas e lazer. Num bairro com cerca de 15.000 habitantes, o ginásio recebe mensalmente mais de mil usuários, sobretudo jovens. No ano de 2022, Mãe Luzia galgou a premiação nacional máxima em diversas modalidades esportivas, porém, mais importante do que as medalhas, é a oferta para o grande número de jovens de uma experiência capaz de dar sentido às suas vidas.
Todas essas experiências têm em comum a qualidade do projeto arquitetônico, resultados exitosos e o reconhecimento (até mesmo afeto) da comunidade onde se inserem. De fácil implementação, são a essência do que se entende por “direito à cidade”, no sentido de uma existência cidadã plena no território, que garanta uma vida comunitária densa e formadora, e uma perspectivas de futuro aos seus jovens. Podem tornar-se um Projeto Locomotiva para a área social, marca de governos comprometidos com os mais pobres e vulneráveis, e com uma transformação estrutural efetiva da nossa sociedade, visando as gerações futuras.
Ermínia Maricato é arquiteta e urbanista, professora titular aposentada da FAU-USP e faz parte da coordenação nacional da Rede BrCidades.
Ion de Andrade é médico, professor universitário e membro da Rede BrCidades.
João Sette Whitaker é arquiteto, urbanista, economista, mestre em Ciência Política, ex-secretário de Habitação de São Paulo e membro da Rede BrCidades.