Lógicas de cooperação e compartilhamento não desafiam apenas a economia do capitalismo.
Questionam formas atuais de mercado, Estado, hierarquia e relação com a natureza. Novo livro examina este conjunto de transformações
Por Anna Grear e David Bollier | Tradução: Simone Paz| Imagem: Andreco
MAIS:
Este trecho é a introdução do livro
The Great Awakening: New Modes of Life amidst Capitalist Ruins
[“O Grande Despertar: Novos Modos de Vida em meio às Ruínas do Capitalismo”]
Organizado por Anna Grear e David Bollier
Punctum Books, EUA [ainda sem edição em português]
O declínio catastrófico e em câmera lenta do capitalismo neoliberal e do Estado-nação nos oferece uma visão perturbadora. Os sintomas dessa pressão estão por toda parte: ursos polares agarrados a blocos de gelo em derretimento; a chegada de refugiados desesperados nas costas da Europa; supremacistas brancos cheios de ódio que ameaçam seus adversários com violência e cometem crimes terroristas; líderes autoritários — incluindo um ex-presidente dos Estados Unidos — desrespeitando o estado de direito; uma onda de “mortes do desespero”, causadas por suicídio, drogas ou álcool; e assim por diante.
As estruturas básicas da vida contemporânea parecem estar desmoronando, como se não fossem mais capazes de conter as energias caóticas liberadas pelo capitalismo global, as tecnologias digitais, a cultura de mercado levada ao extremo e a modernidade. Podemos chamar esse fenômeno de um “Grande Desmantelamento”. Porém, paradoxalmente, este período da história também pode ser chamado, com precisão, de “O Grande Despertar”.
Há uma consciência crescente da necessidade fundamental de mudança na mentalidade e na cultura, como sugerido pelas marchas da juventude contra as mudanças climáticas nos últimos tempos; a ascensão, em muitos países, da política progressista; e uma sensação geral de que o sistema está quebrado e precisa ser substituído. Em meio ao desordenado desmantelamento de paradigmas obsoletos, nascem algumas sementes de mudança robustas, frescas e verdes — embora ainda marginais para a consciência pública. Um grupo crescente de autodenominados “partidários dos Comuns” [orig.: commoners], que trabalham bem longe dos círculos da “opinião respeitável”, vem desenvolvendo novas estruturas de pensamento e plataformas tecnológicas inovadoras. Esses ativistas oferecem uma gama impressionante de abordagens criativas para os desafios centrais da organização social humana. Eles são pioneiros, por exemplo, em hackear criativamente o Direito e em inventar novos tipos de moedas. Eles repensam sistemas alimentares regionais e sistemas para manter compartilháveis as sementes agrícolas. Também, estão desenvolvendo novos modelos de produção decentralizada (“peer-to-peer”), como a “produção cosmo-local”, que permite que as pessoas compartilhem conhecimento e projetos globalmente, de maneira aberta e sem patentes (ao melhor estilo “open source”), enquanto constroem coisas físicas localmente.
Apesar das crises e dos traumas generalizados, o presente parece ser um momento fértil para reinventar o mundo com iniciativas colaborativas. Este livro explora algumas das mais promissoras delas, e dá atenção especial à projeção dessa nova consciência e das visões de mundo que elas refletem. Rapidamente, fica claro que os bens comuns não são apenas recursos inertes e sem dono (por exemplo, os oceanos, o espaço e a atmosfera), como os economistas tentam nos fazer acreditar. Trata-se de sistemas ecossociais vivos, que incubam racionalidades alternativas. Ao contruírem o Comum, certos grupos de pessoas — alguns em grande escala — vêm demonstrando maneiras novas de ser, compreender e agir no mundo, de forma muito profunda.
Ao explorar as variadas e engenhosas maneiras por meio das quais as pessoas estão curando o mundo e a si próprias das devastações da modernidade e do capitalismo, fomos muito inspirados pelo título e ideia central do livro marcante de Anna Lowenhaupt Tsing, “Mushroom at the End of the World: On the Possibility of Life in Capitalist Ruins” (Cogumelos no Fim do Mundo: Sobre a possibilidade de vida em ruínas capitalistas) (1). Ela descreve seu livro como “uma investigação muito original da relação entre a destruição capitalista e a sobrevivência colaborativa em paisagens multi-espécies, o pré-requisito para a continuidade da vida na terra”(2). Explorando como um cogumelo valioso e resistente, o matsutake, nasce e floresce em paisagens negligenciadas e disruptivas — e como os esforços humanos colaborativos são necessários para colher o matsutake — Tsing lança luz sobre o que ela chama de “terceira natureza” ou “o que consegue viver apesar do capitalismo”(3). Compartilhamos da mesma convicção de Tsing sobre a importância dos trabalhos colaborativos como essenciais para a continuidade da vida na Terra. A sobrevivência colaborativa exigirá certa experimentação séria e criatividade. Isso significa começos confusos, vontade de improvisar, novos tipos de instituições colaborativas e, em última instância, uma consciência de que devemos agir e viver dentro de uma realidade ontológico-epistemológica narrada de outra forma.
Apesar da alienação produzida pelo saque capitalista e das condições de precariedade que caracterizam a vida contemporânea, Tsing sugere que é preciso fazer mais do que só resistir e criticar nossa condição. Precisamos “olhar ao redor para notar este estranho mundo novo e […] alongar a nossa imaginação para capturar seus contornos. É aqui que os cogumelos entram em cena para colaborar. A vontade do Matsutake de surgir em paisagens destruídas nos permite explorar a ruína em que nosso lar coletivo se transformou (4).
Sugerimos que os Comuns são também uma forma arquetípica de inteligência biomaterial, que emerge das próprias paisagens devastadas das ruínas capitalistas. Os Comuns, assim como os fungos, criam raízes em lugares inesperados, forjados por conexões em rede, e expressam modos de evolução muitas vezes improváveis, porém promissores. Os Comuns podem ser uma contribuição rica e promissora na busca pela sobrevivência colaborativa, e os colaboradores deste livro mostram como as diversas formas de imaginação social estão inventando novos modos de vida necessários.
Embora o Comum se manifeste de muitas formas diferentes, ele geralmente desafia, em vários níveis de autoconsciência, algumas estruturas fundamentais para a compreensão da consciência e do comportamento humanos, da organização social e da economia política. Tentativas de repensar a cidade como um bem comum, de usar softwares de blockchain para permitir a cooperação em redes abertas e de integrar a produção de alimentos com ecossistemas naturais: esses empreendimentos demonstram como a ontologia e a epistemologia da economia padrão são irremediavelmente grosseiras e reducionistas. À medida que o leitor avança pelos próximos dez capítulos, fica nítido que os paradigmas filosóficos delineados por Adam Smith, John Locke, Thomas Hobbes e René Descartes — entre outros — parecem trajes desbotados de um pensamento vintage. As roupas ainda servem no que diz respeito ao pensamento e à prática sociopolítica, legal e econômica dominante, mas elas não caem bem no corpo, nem são adequadas para as circunstâncias sem precedentes que a vida na Terra enfrenta.
Neste volume, procuramos desconstruir algumas das estruturas desgastadas de pensamento que ainda comandam o debate público e esboçar os rudimentos de uma nova e história mundial e modo de vida que emergem. Se um Grande Despertar estiver em andamento (como acreditamos), é hora de olharmos mais de perto algumas de suas iniciativas de ponta e suas provocantes implicações filosóficas e jurídicas. É hora de considerar como o Comum mudará a política, a governança e o próprio estado-nação. Em dez ensaios de diversas perspectivas, este livro aborda muitas das mudanças históricas na prática social, no direito, economia e filosofia política que ainda não foram devidamente explorados.
O livro abre com três ensaios que desconstroem a situação global atual e suas múltiplas crises, especialmente a crise estrutural que a mudança climática representa para a vida moderna. Sam Adelman descreve o surgimento da grande narrativa do Antropoceno, contextualizando-a em relação às grandes narrativas e outros tropos dominantes da modernidade sobre ciência, razão e progresso, sem esquecer da intersecção entre modernidade e capitalismo. O capítulo expõe o mito do progresso que impulsiona a arrogância do crescimento econômico, do eco-modernismo e do neoliberalismo. Também reflete sobre as narrativas que sustentam o Antropoceno, com relatos do mundo como naturalista, pós-natureza, eco-catastrofista e ecomarxista (“Capitaloceno”). É essencial, argumenta Adelman, ir além da “era da irracionalidade” e procurar “um grande despertar”.
Em seu ensaio, Richard Falk aborda o horizonte da crise planetária, que vem se aproximando em velocidade, e as incertezas e dilemas fundamentais que ela apresenta. Ele argumenta que o mundo e suas populações atualmente habitam numa “zona crepuscular” confusa, na qual não está claro para onde vai migrar o poder, antes dominado por Estados, nos tempos futuros. Como Adelman, que aborda o problema da “racionalidade do Holoceno” — mentalidade de nossa era geológica atual — Falk observa o caráter problemático da resolução de problemas quando esta se encontra emaranhada nas estruturas, práticas e procedimentos do Holoceno. Mudanças climáticas, armas nucleares, a perda da biodiversidade, a persistência da pobreza, fome e desnutrição, e a ameaça de uma doença pandêmica estão à espreita, tornando-se mais terríveis à medida que o estado-nação se dissipa.
Os direitos humanos e os interesses globais também sofrem com a falta de mecanismos eficazes para sua proteção e, ainda assim, não temos nenhuma alternativa óbvia para a ordem mundial centrada no Estado — dilema que aponta para a necessidade de uma mudança radical.
A transicionalidade também é um tema central para Andreas Karitzis — mais especificamente a transicionalidade do sistema político liberal. No entanto, Karitzis vai além do estreito campo de ação da política para argumentar que há uma necessidade urgente de as pessoas adotarem de maneira transformadora “uma postura pessoal, a mentalidade coletiva e ferramentas de mobilização política e social”. De fato, é um momento confuso porque tudo parece estar em fluxo, com “transformações que vêm abalando radicalmente as arquiteturas institucionais estabelecidas e mudando as regras e métodos da prática política, ao mesmo momento em que novos atores começam a surgir, complicando ainda mais as coisas”. Um desafio nessa necessária repaginação do sistema envolve o desenvolvimento de novas ontologias para a vida política e novas formas de práticas cotidianas — um conjunto de capacidades culturais com nuances, que sejam mutáveis e criativas o suficiente para prosperar na transição do período contemporâneo.
Onde, então, podemos encontrar essas formas de vida, essa nova ontologia? É aqui que o Comum traz tanta esperança e criatividade. Neste livro, alguns autores oferecem uma pequena amostrade exemplos extraídos de outros campos, mais amplos e crescentes, da criatividade em formas de vida — dos espaços digitais, da agricultura e da vida urbana, por exemplo — enquanto outros associam tais práticas a bases ontológicas novas e vigorosas, incluindo as próprias novas bases ontológicas dos Comuns.
Michel Bauwens e Jose Ramos enquadram os Comuns num muito necessário “mutualismo para o Antropoceno”. Enquanto os indivíduos se limitam a registrar o momento contemporâneo como sendo de crise, a realidade é que uma transição global está em curso, nada menos do que o “nascimento do ‘planetário’ como um elemento da experiência humana, e […] a transição das ordens sociais baseadas na exploração, para ordens sociais baseadas num mutualismo generativo”. Essa é uma conjuntura histórica, argumentam Bauwens e Ramos, em que a necessidade urgente de reduzir o impacto humano no planeta alia-se a abordagens de base comum que podem mitigar as crises sistêmicas da economia política. Os autores incitam uma re-imaginação coletiva da maneira como os seres humanos vivem juntos — como moradores urbanos, usuários da internet e atores políticos — apontando que o Comum e o compartilhamento são “distribuídos globalmente, conectados em rede e altamente visíveis”. O desafio central, argumentam, é facilitar, em vários níveis, a mudança sistêmica emergente para uma nova economia política planetária.
Um aspecto fundamental dessa mudança — além de central para a práxis do Comum — é a necessidade de resistir aos cercamentos. A mercantilização, privatização e financeirização da riqueza compartilhada são o refrão, o leitmotiv, de nossa época, facilitado pela priorização implacável das formas jurídicas tradicionais de propriedade e contrato, que tendem a servir aos interesses excludentes de indivíduos e empresas. Os Comuns não são estranhos às problemáticas apresentadas por tal dinâmica. Diante dessas pressões ferozes, Maywa Montenegro oferece um relato delicado, sensível e íntimo da luta para proteger as sementes de código aberto.
Esta luta é centrada em novas formas para a “liberdade de sementes”, ideia que emerge do conceito dos Comuns. Diante do poder do mercado corporativo e de sua difusão de cultivos transgênicos, pesticidas e herbicidas, além de patentes que privatizam a “riqueza comum”, os movimentos sociais buscam recuperar aquilo que foi apropriado. O capítulo de Montenegro, explorando a prática do Comum como algo biocultural, localizado dentro de uma ordem político-econômica emergente, traça as “origens e o desenvolvimento inicial da Open Source Seed Initiative (OSSI – Iniciativa pelo Código Aberto das Sementes), que busca libertar a semente”. A OSSI, sugere Montenegro, é um exemplo de um movimento crescente de comunhão transnacional com o objetivo de “desbancar” a propriedade intelectual.
Primavera De Filippi e Xavier Lavayssiere pesquisam as tensões análogas em relação à produção autônoma e peer-to-peer na Internet. A internet já foi um ecossistema aberto para inovar sem necessidade de permissão e um terreno virtual fértil para o “surgimento de comunidades baseadas em bens comuns que trabalham com regimes jurídicos alternativos, e de novos modelos participativos para promover a abertura e a colaboração distribuída”. Porém, nos últimos anos, a Internet tem se tornado cada vez mais dominada por grandes corporações que usam plataformas centralizadas e aplicativos de propriedade para controlar, de fato, infraestruturas online essenciais.
Os autores observam que, mais recentemente, uma nova tecnologia de software surgiu: o blockchain, combinando tecnologias peer-to-peer, teoria dos jogos e algoritmos criptográficos simples (“primitivos criptográficos”). No entanto, essa tecnologia depende — pelo menos em sua forma atual, e apesar de toda a sua promessa de descentralização e desintermediação — em última instância, da dinâmica do mercado e dos incentivos econômicos. De Filippi e Lavayssiere abordam essas deficiências, argumentando que “devemos elaborar um modelo de administração mais abrangente, que se estenda para além do reino das ações verificáveis somente por algoritmos e que apoie ou facilite a gestão da infraestrutura”. Um novo modelo de regulamentação também é necessário para estabelecer uma economia colaborativa que seja receptiva às interações diretas entre uma rede de relações par-a-par, sem a necessidade de uma autoridade externa ou de um intermediário.
Essas tensões familiares — centralização e controleversuspráticas do Comum inovadoras, conectadas e distribuídas — são novamente examinadas no capítulo de David Bollier. Observando o poder e a diversidade do Comum na vida contemporânea, Bollier aponta para as dificuldades enfrentadas pela prática do Comum como uma “atividade legal”. Os Comuns, observa, são alheios a muitos aspectos do sistema de mercado/Estado dominante, e “o Estado está predisposto a ignorar os bens comuns, criminalizar suas atividades ou explorar seus recursos em aliança com a classe empresarial”. Em resposta, conforme o “Universo Comum” se desenvolve, “um grande desafio é imaginar como a lei poderia apoiar o Comum de maneira afirmativa”. Bollier explora uma série de iniciarivas de “hackeamento do Direito” — adaptações da lei vigente, que tentam tornar a relação entre o Comum e a lei estatal moderna mais compatível funcionalmente. Os hacks legais, argumenta Bollier, “têm proliferado nos últimos anos, à medida que os Comuns descobrem que as instituições jurídicas estatais — parlamentos, tribunais, órgãos reguladores — estão simplesmente alinhadas demais com os interesses corporativos para oferecer um apoio genuíno aos bens comuns.”
Essa resistência do direito ao Comum, quando vista sob a luz dos profundos compromissos do sistema jurídico, não surpreende — principalmente, sob o prisma do sistema jurídico que existe nas grandes narrativas da modernidade e do capital, conforme exposto por Adelman no capítulo inicial do livro. Em seu capítulo, Vito De Lucia examina criticamente os fundamentos profundos do Direito, caracterizando os bens comuns como “um horizonte rico e promissor, onde as práticas tentam resistir à crescente invasão da modernidade capitalista nos ecossistemas naturais e nas comunidades”.
De Lucia nos oferece uma caracterização do Comum como resistência através da conversa crítica e direta com os próprios bens comuns, oferecendo, assim, uma análise da intersecção conceitual entre o Comum, a ecologia e o direito, que ele vê como “um espaço produtivo de engajamento teórico, para repensar o direito com e por meio da ecologia”. Para De Lucia, os partidários dos Comuns repensam a “Natureza” respondendo ao mundo vivo como “co-participante(s), dentro de um conjunto de relações colaborativas”, nas quais os humanos detêm um papel crucial em meio ao esforço para integrar o natural e o artificial dentro de “um todo orgânico”. Um objetivo central da análise de De Lucia é oferecer um “pensamento do direito além do Direito, onde o Direito com D maiúsculo é definido para representar a modernidade jurídica.” Contra as aspirações universalistas e cercamentos totalizantes do Direito, De Lucia posiciona os bens comuns como um apanhado de montagens complexas e abertas, conjugadas frouxamente, a partir das quais um tipo de lei mais responsável e mais contestador poderia emergir.
Na questão da complexidade, Paul Hartzog oferece um relato rigoroso de uma nova realidade dinâmica e não-linear. Hartzog argumenta que o Comum, a cooperação e os sistemas complexos se sinergizam de maneiras que alavancam a diversidade, num efeito que ele chama de “O Mecanismo da Diferença”. Isso expressa um agrupamento dinâmico e adaptativo de novas formas de espaço social, político e econômico em que novos modos de ser, “diversos e em evolução, fluidos e anárquicos”, vêm surgindo. Este novo espaço, argumenta Hartzog, é “ontologicamente generativo no sentido de que cria e ativa continuamente novas formas de diferença, resultando em uma revolução perpétua.” Em última análise, ele argumenta, essa nova situação exige que abracemos a colaboração horizontal e a diversidade como necessidades funcionais, em vez de continuar a impor regimes de conformidade, hierarquia e similaridade. Descritivamente, o objetivo de Hartzog é produzir uma compreensão de sistemas e padrões adaptativos complexos. Normativamente, seu objetivo é esboçar a possibilidade prática de aproveitar a complexidade para “criar uma civilização mais harmoniosa, consciente e justa”.
No capítulo final, Anna Grear reúne e dá coesão a temas que aparecem de diversas maneiras nos capítulos anteriores. Direcionando sua análise firmemente contra a neoliberalização da natureza, Grear volta-se para um Novo Materialismo crítico e politicamente consciente como a base para a ontologia comum. Em termos convergentes com a sugestão de De Lucia de que os partidários dos Comuns veem a “Natureza” como “um co-participante em um conjunto de relações colaborativas”, Grear explora o que pode significar pensar em agentes não-humanos como Comuns. Ela leva essa linha de pensamento ainda mais longe, abraçando a “ação” da matéria inorgânica e considerando os insights potenciais para uma ecologia política dos bens comuns. Em última análise, argumenta Grear, “a natureza transcorpórea do risco climático e os fluxos tóxicos que marcam toda a existência planetária sugerem a importância vital de uma onto-epistemologia comum viva, altamente politizada e crítica para com as implicações potencialmente opressivas da ‘natureza’, como uma construção, para alertar sobre seu padrão de injustiças históricas e a conexão destas com as péssimas distribuições contemporâneas do risco, perigo, vida e morte”.
Para Grear, os relatos feministas do Novo Materialismo depositam sua esperança num vocabulário e numa abordagem que ressignifique o Comum como uma forma de onto-insurgência humana-não humana.
Juntos, os capítulos do livro oferecem o encontro com uma gama de reflexões centradas no Comum. De maneiras diferentes, eles abordam as tensões planetárias causadas pela abordagem neoliberal e pela eco-destrutividade, ao mesmo tempo em que ilustram o poder do Comum, complexo e adaptativo, no cultivo de um novo paradigma. Se os traços deste novo mundo permanecem apenas vagamente perceptíveis, nos termos da ordem atual — e pior, sofrendo forte resistência do sistema de mercado/estado – somos tentados a invocar a resposta de Galileu quando forçado a se retratar sobre sua afirmação de que era a Terra que se movia torno do sol: “…no entanto ela se move”.
Sistemas que dependem de uma inteligência distribuída, colaboração da comunidade, administração ecológica e do espírito de compartilhamento são notavelmente generativos. Eles são estruturalmente capazes de atender às necessidades de maneiras flexíveis e respeitadoras do planeta. São socialmente construtivos e responsivos às pessoas que vivem dentro deles. Sua grande promessa, embora ainda embrionária, baseia-se em uma profunda mudança ontoepistemológica na maneira como as pessoas abordam o mundo. É precisamente por isso que novos/velhos sistemas de construção do Comum oferecem um espaço de solução tão rico, e o motivo pelo qual eles representam algo como um Grande Despertar para a mentalidade moderna. O Comum não busca projetos mágicos de mudança, mas sim padrões e normas evidentes que permitam às pessoas construir novos tipos de instituições baseadas em suas necessidades reais, onde elas realmente possam viver numa conexão entre pontos humanos e não humanos. Resumindo: a construção do Comum oferece uma estratégia evolucionária convincente para escapar de alguns becos sem saída estruturais, nos quais a humanidade ainda hoje se encontra presa.
- Anna Lowenhaupt Tsing, Mushroom at the End of the World: On the Pos-
sibility of Life in Capitalist Ruins (Princeton: Princeton University Press, 2015)
- Ibid., dust jacket.
- Ibid, viii.
- Ibid, 3.