Para concentrar riquezas, o tecno-rentismo instala catracas por toda a parte e impede que a potência produtiva da sociedade se realize. Mas aí está também sua fraqueza A economia arrasta-se, as crises financeiras sucedem-se e a política vive instabilidade permanente
Resenha de:
Resgatar a função social da economia, de Ladislau Dowbor
Publicado conjuntamente pela Editora Elefante e Outras Palavras
[Leia a parte 1 e a parte 2]
III.
A maldição de Marx:
quanto mais desigualdade, mais crises
No tempo do capitalismo industrial, um tema que fascinou de modo permanente os estudiosos do sistema foram suas crises. Karl Marx foi pioneiro também em explicá-las, ao apontar que elas originavam-se de uma contradição fundamental. A produção de riquezas era cada vez mais socializada, à medida em que a industrialização espraiava-se pelo mundo e incorporava novos contingentes de trabalhadores. Mas a apropiração dos bens produzidos mantinha-se privada e cada vez mais concentrada. Por isso, abria-se aos poucos um fosso entre o imenso volume de mercadorias produzidas e a incapacidade das sociedades para consumi-las. Em certo ponto, eclodia uma crise de superprodução. As fábricas e seu maquinário tornavam-se inúteis. Era preciso destruir o capital existente – ou, fisicamente, por meio de guerras, ou com o advento de novas tecnologias, que exigissem o descarte e renovação das estruturas de produção anteriores.
Em Resgatar a função social da economia, Ladislau Dowbor mostra que também esta dinâmica mudou, na era do tecno-rentismo contemporâneo. As crises de superprodução persistem – como demonstra a “Grande Recessão” iniciada em 2008. Mas a elas sobrepõe-se um novo fenômeno, que o livro analisa em detalhes: o desperdício das estruturas de produção existentes. É algo que resulta da próprianatureza do novo sistema. Agora, como se viu, os lucros derivam em grande parte da criação artificial de escassez. Ou seja: para que uma minoria cada vez mais ínfima continue a concentrar riquezas, é preciso instalar catracas por toda a parte e impedir que a potência produtiva da sociedade se realize. As novas tecnologias permitem que o conhecimento mais avançado esteja disponível para todos. Mas o caso de Aaaron Swartz – um gênio precoce da programação e do ativismo digital – é emblemático. Ao tentar compartilhar a biblioteca virtual do MIT, uma das principais universidades dos EUA, ele foi preso, implicado num processo que poderia resultar em 35 aos de cárcere e levado ao suicídio, aos 26 anos.
A obsessão do novo sistema em restringir o desenvolvimento do Comum também pode ser observada em outros fenômenos, menos pontuais mais igualmente grotescos. No Brasil, a Emenda Constitucional 95 proibiu o Estado de ampliar os investimentos sociais por duas décadas – ignorando a premência do combate à pobreza, a relevância dos serviços de Saúde e Educação e até o crescimento vegetativo da população. Alegou-se “disciplina fiscal”. Mas não há nenhum limite ao desperdício de dinheiro público com o pagamento, pelo Estado, de juros (os mais altos do mundo) à oligarquia financeira.
No capítulo III de Resgatar a função social da economia, Dowbor lança um olhar sobre o imenso desaproveitamento de capacidades produtivas que caracteriza o novo modo de captura da riqueza coletiva. O mais dramática é o do trabalho. “Um sistema cuja principal forma de se apropriar do excedente social se dá por meio de rentismo improdutivo, precisa cada vez menos de força de trabalho para ter quem explorar” resume o autor. E aponta como exemplo o Brasil. Das 106 milhões de pessoas que compõem a população em idade de trabalhar, apenas 44 milhões (42%) têm emprego formal na iniciativa privada (33 milhões) ou no setor público (11 milhões). Enquanto isso, há 15 milhões de desempregadas e 40 milhões que “se viram” em ocupações informais, na maioria das vezes precárias.
E não se trata apenas de percentuais. A era em que o conhecimento tornou-se o principal fator de produção deveria ser a do trabalho mais qualificado, menos penoso e realizado em jornadas mais leves. Mas a ultraconcentração da riqueza social nas mãos de uma oligarquia mínima produz o efeito oposto. Multiplicam-se os trabalhos exaustivos e degradantes, as jornadas que se prolongam após o expediente, a obrigação de estar permanentemente à disposição da empresa (e do algorítimo), a ausência de direitos e garantias.
Num livro publicado este ano (Automation is a Myth), o sociólogo neozelandês Luke Munn ajuda a desvendar como a plataformização está transformando para muito pior o mundo do trabalho. Por trás dos processos dos “sistemas automatizados”, diz ele, há um contingente cada vez maior de trabalhadores precários. Não são apenas os motoristas ou empregadores de aplicativos – mas também os dezenas milhões que atuam na captura (quase sempre sub-reptícia), de dados pessoais, no tratamento e uniformização destas informações (que em seguida alimentarão máquinas e sistemas), na moderação de conteúdos das redes sociais ou em atividades mais antigas e banais, como os serviços de assistência ao cliente. A automação não remove o trabalho humano, diz Munn, mas elimina “o trabalhador pleno, com pagamento integral, com plenos direitos. O sistema não almeja o “fim do trabalho”, e sim “submissão total dos assalariados às plataformas e à inteligência artificial”. Por isso, “a precarização não é mero acidente”.
Mas não se desperdiça apenas trabalho. A inibição da capacidade de produzir, por um sistema que ganha isntalando catracas e criando escassez, atingem também a terra (urbana e rural), as políticas públicas, o potencial científico e… o próprio capital. Dowbor examina cada um destes processos.
A área agricultável não pode estar disponível para todos, ou os poucos que a controlam perderão seus privilégios, mostra o livro. Por isso, resiste-se tanto à reforma agrária num país como o Brasil, em que há 225 milhões de hectares disponíveis (já excluídas as florestas, os demais biomas protegidos e as áresa onde não há solos adequados ou água suficiente) e apenas 63 milhões (26%) são usados para lavouras. O restante (160 milhões de ha., ou cinco Itálias) está reservado para especulação ou destinado à pecuária extensiva. Aqui, as lógicas pré=capitalistas (o privilégio de posse da tarra, como forma rentista arcaica) entrelaça-se com o rentismo contemporâneo, uma aliança visível na articulação do agronegócio com o desmatamento, a grilagem de terras pública e os grandes traders internacionais de commodities.
As políticas públicas e o investimento do Estado, que seriam cruciais pra renovar a Saúde e a Educação Pública, construir cidades humanizadas e para todos ou oferecer infra-estrutura moderna, estão constrangidas pela ideologia da disciplina fiscal. Em consequẽncia, impõem-se as lógicas da mercantilização e do privilégio: os serviços de qualidade são oferecidos apenas aos que pagam, precisamente para que gerem lucros.Embora seu alvo principal sejam as maiorias, esta restrição acaba atingindo também as classes médias.
Os serviços públicos e a renovação da infraestrutura poderiam oferecer ocupações dignas e estimulant para gerações de profissionais de formação superior hoje à margem. De engenheiros e economistas a assistentes sociais; de psicólogoa a planejadores e ambientalistas; de sociólogos a biólogos e geólogos. Mas o estreitamento destas possibilidades leva ao desperdício dopotencial científico e obriga um enorme contingente de pessoas bem formadas a aceitar ocupaçẽos muito abaixo das habilidades que poderiam exercer, e quase sempre inseguras e precárias.
O desaproveitamento do capital é a dimensão mais surpreendente reportada por Dowbor. Mesmo nas condições de desigualdade extrema existentes no Brasil, seria possível direcionar a riqueza acumulada pelas elites econômicas para atividades produtivas. Mas as dinâmicas atuais conduzem ao contrário: os “investimentos” mais rentáveis para o dinheiro sobrante são os que o conduzem à espeuclação rentista. “O grande dinheiro se divorciou em grande parte dos processos produtivos. E o capital vai para onde rende mais”, lembra Dowbor.
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Esta dinâmica de degradação do trabalho e da natureza em favor de uma oligarquia cada vez mais reduzida multiplica fortunas – mas tem meios para se reproduzir? Resgatar a função social da economia sugere que não. As próprias taxas de evolução do PIB, mostra o livro, são agora medíocres. Parece inacreditável, mas o imenso avanço tecnológico das últimas decadas não foi capaz sequer de grarntir o crescimento das economias. É como se, um século e meio depois, a maldição de Marx se impusesse: enquanto não resolverem o nó da desigualdade, as sociedades viverão sob o fantasma das crises.
Quando virá o próximo colapso dos mercados financeiros? Esta pergunta perturba todos os dias as novas oligraquias. Beneficiárias de uma transferência maciça de recursos públicos, elas intuem que, em algum momento, não será possível mais sustentar a captura do trabalho social. Nesse ponto, a pirâmide desabará.
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Um de seus flancos fágeis é o da política. O velho centro liberal, que dava estabilidade às instituições e mantinha as sociedades coesas em torno da velha ordem capitalista, está ameaçado. Cresce o descrédito da democracia, vista por muitos, entre as maiorias, como mero teatro para maquiar as desigualdades e ocultar os bastidores do poder, onde as elites fazem seus negócios. Surgem, em especial nas antigas classe médias decaídas, o ressentimento e o desejo de fazer tudo voar pelos ares.
Mas o declínio dos partidos que defendem as velhas lógicas de dominação seria necessariamente má notícia? O último capítulo do livro de Ladislau sugere que não. O autor já não se contenta em afirmar que surgiram bases materiais para sociedades baseadas na colaboração. Ele aponta eixos para as mudanças políticas que poderão abrir a transição para uma nova ordem social. É o que veremos no último texto desta série.