Para pedir condenação por genocídio, África do Sul apoia-se nas declarações das próprias autoridades israelenses. Processo é longo, mas Corte Penal Internacional pode exigir cessar-fogo já. Tel-Aviv e Washington temem isolamento desastroso
Publicado 11/01/2024 às 17:36 – Atualizado 11/01/2024 às 18:19
Por Medea Benjamin e Nicolas J. S. Davies, no Codepink Tradução: Antonio Martins
Neste 11 de janeiro, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) em Haia realizou sua primeira audiência no caso da África do Sul contra Israel sob a Convenção de Genocídio. A primeira medida provisória que a África do Sul solicitou à corte é ordenar o fim imediato dessa carnificina, que já matou mais de 23 mil pessoas, a maioria mulheres e crianças. Israel está tentando bombardear Gaza até apagá-la, e espalhar os sobreviventes aterrorizados pela Terra – o que atendendo, nos mínimos detalhes, à definição de genocídio da Convenção.
Como os países envolvidos em genocídios não declaram publicamente seu verdadeiro objetivo, o maior obstáculo legal para qualquer processo por genocídio é provar a intenção de praticá-lo. Mas, no caso extraordinário de Israel, cujo culto de direito divino é apoiado incondicionalmente pela cumplicidade dos EUA, seus líderes têm sido singularmente descarados sobre seu objetivo de destruir Gaza como refúgio da vida, cultura e resistência palestinas.
A petição de 84 páginas da África do Sul à CIJ inclui dez páginas (a partir da 59) com declarações de autoridades civis e militares israelenses que documentam suas intenções genocidas em Gaza. Incluem-se declarações do primeiro-ministro Netanyahu, presidente Herzog; do ministro da Defesa, Yoav Gallant; de outros cinco ministros, militares de alto escalão e membros do Parlamento. Ao ler essas declarações, é difícil não reconhecer a intenção genocida por trás da morte e devastação que as forças israelenses e as armas norte-americanas estão causando em Gaza.
A revista israelense +972 entrevistou sete oficiais de inteligência israelenses atuais e antigos, envolvidos em ataques anteriores a Gaza. Eles explicaram a natureza sistemática das práticas de mira de Israel e como os alvos da infraestrutura civil – eufemisticamente chamados de “alvos de energia” foram vastamente expandidos no atual ataque.
Os “alvos de energia” de Israel em Gaza incluem edifícios públicos como hospitais, escolas, bancos, prédios do governo e prédios residenciais. O pretexto público para destruir a infraestrutura civil de Gaza é que os civis culparão o Hamas por sua destruição, minando assim sua base civil de apoio. Essa lógica brutal foi comprovadamente desmentida em conflitos promovidos pelos EUA em todo o mundo. Em Gaza, não passa de uma fantasia grotesca. Os palestinos entendem perfeitamente quem os está bombardeando – e quem está fornecendo as bombas.
Oficiais de inteligência disseram ao +972 que Israel mantém estatísticas detalhadas de ocupação para cada edifício em Gaza e estimativas precisas de quantos civis serão mortos em cada edifício que bombardeia. Embora as autoridades israelenses e americanas menosprezem publicamente as contagens de vítimas palestinas, fontes de inteligência disseram ao +972 que os números de mortos palestinos são surpreendentemente consistentes com as próprias estimativas de Israel de quantos civis está matando. Para piorar, Israel começou a usar inteligência artificial para gerar alvos com escrutínio humano mínimo, e está fazendo isso mais rápido do que suas forças podem bombardeá-los.
Autoridades israelenses afirmam que cada edifício de apartamentos alto que bombardeiam tem alguma presença do Hamas, mas um oficial de inteligência explicou: “O Hamas está em toda parte em Gaza; não há prédio que não tenha algo do Hamas; por isso, se você quiser encontrar uma maneira de transformar um prédio alto em um alvo, será fácil.” Como resumiu Yuval Abraham do +972, “As fontes entenderam, algumas explicitamente e outras implicitamente, que o dano aos civis é o verdadeiro propósito desses ataques.”
Na véspera do Ano Novo, dois dias depois de a África do Sul pedir a aplicação da Convenção de Genocídio à CIJ, o ministro das Finanças de Israel, Bezalel Smotrich, declarou que Tel-Aviv deveria esvaziar a Faixa de Gaza de palestinos e trazer colonos israelenses. “Se agirmos de maneira estrategicamente correta e incentivarmos a emigração”, disse Smotrich, “se houver 100.000 ou 200.000 árabes em Gaza, e não dois milhões, todo o discurso sobre ‘o dia seguinte’ será completamente diferente.”
Quando repórteres confrontaram o porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, Matt Miller, sobre a declaração de Smotrich e declarações semelhantes do ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, Miller respondeu que o primeiro-ministro Netanyahu e outros funcionários israelenses garantiram aos Estados Unidos que essas declarações não refletem a política do governo israelense.
Mas as declarações de Smotrich e Ben-Gvir seguiram-se a uma reunião de líderes do Partido Likud no Natal, onde o próprio Netanyahu disse que seu plano era continuar o massacre até que o povo de Gaza não tivesse escolha a não ser sair ou morrer. “Em relação à emigração voluntária, não tenho problema com isso”, disse ele ao ex-embaixador israelense na ONU, Danny Danon. “Nosso problema não é permitir a saída, mas a falta de países dispostos a receber os palestinos. E estamos trabalhando nisso. Essa é a direção que estamos seguindo.”
Deveríamos ter aprendido com as guerras perdidas dos Estados Unidos que o assassinato em massa e a limpeza étnica raramente levam à vitória militar ou ao êxito político. Com mais frequência, alimentam ressentimentos profundos e desejos de justiça ou vingança que tornam a paz mais elusiva e o conflito endêmico.
Embora a maioria dos mártires em Gaza sejam mulheres e crianças, Israel e os Estados Unidos justificam politicamente o massacre como uma campanha para destruir o Hamas matando seus líderes seniores. Andrew Cockburn descreveu em seu livro Kill Chain: the Rise of the High-Tech Assassins [“Cadeia da Matança: o surgimento dos assassinos high-tech”] como, em 200 casos estudados pela inteligência militar dos EUA, a campanha do país para assassinar líderes da resistência iraquiana em 2007 levou, em todos os casos, à ampliação dos ataques contra as forças de ocupação dos EUA. Cada líder de resistência que mataram foi substituído em 48 horas, invariavelmente por novos líderes mais agressivos, determinados a provar sua valentia matando ainda mais soldados dos EUA.
Mas isso é apenas mais uma lição não aprendida, já que Israel e os Estados Unidos estão matando líderes da Resistência Islâmica em Gaza, Cisjordânia, Líbano, Iraque, Iêmen e Irã, arriscando provocar uma guerra regional e se tornando mais isolados do que nunca.
Se a Corte Internacional de Justiça emitir uma ordem provisória de cessar-fogo em Gaza, a humanidade deve aproveitar o momento para insistir que Israel e os Estados Unidos finalmente encerrem esse genocídio e aceitem que o domínio do direito internacional se aplica a todas as nações – inclusive a eles.