Humanidade ainda não conseguiu criar um modelo urbano que não seja o de “fortalezas”, diz o primeiro indígena na Academia Brasileira de Letras. É tempo de inventar outra pólis: em vez de operar na paisagem, devemos nos confundir com ela
Publicado 11/10/2023 às 13:24
Ailton Krenak em entrevista a Romullo Baratto, no ArchDaily
Ailton Krenak é um ambientalista, filósofo, escritor e poeta, doutor honoris causa pela Universidade Federal de Minas Gerais e pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Como líder indígena, exerceu papel fundamental na conquista dos Direitos Indígenas na Constituição de 1988. Suas ideias têm sido compartilhadas em palestras, aulas e livros como Ideias para adiar o fim do mundo, A vida não é útil e Futuro Ancestral.
Krenak articula imagens de suas experiências vividas em conceitos, e os transmite por meio de uma linguagem baseada na oralidade e na poesia. Sua cosmovisão não distingue paisagem e ser humano, animais, rios e montanhas, e seu chamado por novos modos de vida é urgente: precisamos “arrebentar o chão para que as águas que estão canalizadas possam invadir a superfície.” Em 5 de setembro, esteve em São Paulo para uma palestra no Archtrends Summit 2023 organizado pela Portobello, onde pudemos conversar sobre cidades, florestas e o futuro da Terra.
Às vezes fico surpreso com os lugares de onde as pessoas se interessam pelo meu trabalho. A possibilidade de atuar em diferentes contextos se tornou comum ao longo da minha experiência, então, quando alguém se interessa por alguma atividade que eu faço, recebo isso como reconhecimento. Porque eu sei que há, na literatura, por exemplo, gente que escreve maravilhosamente bem — e às vezes escreve a vida inteira — e só é reconhecida muito tempo depois.
RB: Talvez o seu trabalho tenha essa facilidade de se espalhar por muitas áreas porque você usa uma linguagem poética rica em imagens que permite que as pessoas consigam se relacionar com o que você diz. É uma comunicação que não cria barreiras e possibilita o debate sobre alguns temas necessários, como por exemplo o meio ambiente.
Muitas vezes eu tive que dizer às pessoas que isso não existe. Nós somos o meio e também o ambiente. É uma visão totalmente não natural que os humanos se refiram às paisagens onde nos deslocamos como meio. Isso é uma uma noção extrativista. Enquanto produzirmos uma linguagem que fala do mundo como exterioridade, vamos continuar afirmando o extrativismo, vamos atuar como agentes extrativistas no mundo. Tanto na biosfera do planeta como no mundo imaginado. Vamos imaginar que temos a possibilidade de elaborar alternativas a esse mundo que habitamos. Se pensamos elas sempre no mesmo padrão, continuaremos sendo extrativistas. Estamos presos nesse mal entendido que a engenharia e as ciências duras produziram ao longo dos séculos XVIII, XIX, XX e até agora. Nós chegamos no século XXI reproduzindo as mesmas lógicas que inspiraram, por exemplo, aquilo que criamos como assentamento humano.
Todo assentamento humano no mundo hoje, principalmente no mundo ocidental, é a reprodução de si mesmo. Mudam os materiais, mas o molde permanece. Por exemplo, aquela coisa feia que é Dubai se considera arquitetura moderna. Ela reivindica isso porque acredita que está dentro de uma tradição. Mas ela está dentro do pior da tradição — e o pior da tradição é reproduzir o colonialismo, o extrativismo… é uma mímica em que parece que você está trazendo alguma coisa de novo, mas não é nada novo; você está apenas atuando na reprodução de um modelo que é o extrativismo. Como vamos imaginar assentamento para os humanos que não expropriam outras formas de vida?
Certa vez, um Lama que veio visitar o Brasil me falou que em sua comunidade, ao saírem pela manhã, todos olhavam para o chão para verificar se não havia formigas, para não pisar nelas. “Nossa, que coisa incrível! Então vocês evitam pisar na formiga?” perguntei, no que ele disse: “Claro! Por que vamos querer pisar na formiga?” Hoje vejo que esse jeito de imaginar o mundo é não extrativista: você não vai pisar na formiga para passar. Deixa a formiga passar e depois você passa.
Algumas pesquisas científicas sobre meio ambiente e crise climática dizem que estamos muito perto de um ponto de não retorno. Esses dados sugerem que, se não fizermos nada, a humanidade deixará de existir sobre a Terra em um momento não muito distante. O que você pensa sobre isso e como isso poderia se relacionar com sua ideia de cosmovisão?
O ponto de não retorno é quando a biosfera do planeta vai parar de dar de graça para nós tudo o que tivemos até agora, e aí teremos que começar a pagar, literalmente, com as nossas vidas, tudo o que quisermos.
Gosto de pensar que existe algo como uma entidade supranatural, aquilo que o James Lovelock chamou de hipótese de Gaia. Nessa teoria, a Terra seria Gaia, um organismo vivo com humor e inteligência, e não uma plataforma “plástica”, vamos dizer assim. Penso que esse organismo vivo que tem humor e inteligência e mantém tudo em equilíbrio vai parar de doar todas essas coisas para nós, e a partir daí teremos que lidar com o custo real dos recursos naturais. Assim, o ponto de não retorno não é uma extinção abrupta das diversidades do planeta — pelo contrário, é possível que atravessemos o século XXI inteiro nos arrastando como lesmas numa calçada quente. A lesma não morre, mas pena para se mover.
Não é uma imagem bonita, não é mesmo?
É uma imagem terrível. Tem gente que prefere a extinção, isso que se tem chamado de sexta extinção, em que desaparece toda essa forma de organização de mundo que experimentamos até agora, incluindo nossas memórias mais antigas da Terra. O ponto de não retorno seria, então, o momento em que deixamos de ter toda essa possibilidade de prosperar e passamos a mitigar. Nós vamos entrar na era da mitigação.
Quando escrevi o livro Ideias para adiar ao fim do mundo, estava falando sobre essas coisas, ideias que podem evitar que a gente sofra imediatamente, mas elas não vão evitar todo o dano. A gente já chegou perto demais do que o painel do clima chama de não retorno, sendo que para alguns biomas, por exemplo a Amazônia, isso pode ocorrer em cinco anos. Se continuarmos derrubando, queimando, quebrando, em cinco anos ela perderá sua capacidade de se regenerar — se tornará um ecossistema combalido, doente.
Você comentou sobre as diversidades do planeta e eu queria ouvir um pouco mais sobre isso. A ideia ocidental de que somos todos iguais não dá conta da experiência da vida em que somos todos diferentes. Como você imagina a cidade para essas diferenças? Será que a floresta pode ensinar algo à cidade?
Eu tenho buscado uma palavra pra me referir a esses assentamentos que a gente chama de cidade. Eu tenho insistido em falar que são assentamentos humanos, porque quando falamos cidade já estamos tributando a história antiga. Cidade é Meca, Atenas, Bagdá, aqueles assentamentos que ficavam no Egito Antigo… cidades. Ao longo do tempo, a única coisa que a gente fez foi reproduzir isso; o que fazemos no século XXI já fazíamos há três, quatro mil anos.
A pergunta é: com tanto desenvolvimento tecnológico, porque o sapiens não foi capaz de inventar alguma coisa diferente de uma caverna, de um bunker? Um prédio feito de ferro, cimento e concreto é uma caverna. E uma caverna de mau gosto. Será que não conseguimos criar ambientes permeáveis, onde podemos nos sentir pertencendo aos espaços, em vez de sobre os espaços, em cima deles?
Há muito tempo sou fascinado pelas ideias do Hélio Oiticica, os parangolés e os penetráveis. Aquelas ideias eram muito avançadas para a época dele e foram um pouco negligenciadas. Se as pessoas que lidam com cidades, arquitetura e mesmo engenharia tivessem prestado mais atenção aos enunciados de Oiticica, dali teria saído, talvez, uma verdadeira escola de experimentos de parangolés, permeáveis e habitáveis que poderia deixar de ser cidade. É como se fosse um devir floresta — algo orgânico.
Aqui em São Paulo tive uma experiência muito boa de trabalhar com a artista Bia Lessa. Estávamos ainda vivendo aquele trauma da pandemia e ela trouxe a possibilidade de imaginarmos a radicalização do estrago no centro da cidade. No Largo do Paissandú, acelerar a distopia até ele virar entulho, prédios caindo, entrando em colapso, seres humanos vivendo de modo deplorável. Acelerar aquilo até chegar no máximo da distopia e da devastação, para então começar a trabalhar com aquelas estruturas, arrancar o piso do chão, tirar as paredes dos prédios decadentes, aproveitar apenas as estruturas de base. Encher de vegetação, de floresta, de animais, transformar aquilo no lugar de produção orgânica de vida. Arrebentar o chão para que as águas que estão escondidas, canalizadas, possam invadir a superfície.
Enfim, sair da distopia e produzir uma utopia configurada dentro do que era uma antiga ruína urbana. É a ideia do Paulo Tavares de imaginar a cidade como uma ruína florestal. Se a cidade é essa ruína, e eu acredito que seja, ela guarda, portanto, um devir floresta. Então, não é absurdo você imaginar uma floresta dentro das estruturas urbanas da cidade. A questão é: porque não permitem que outras insurgências apareçam nesse espaço tão vigiado que é o espaço urbano, a metrópole? O espaço urbano é o espaço mais vigiado que existe. Vigiado do ponto de vista sanitário, do comportamento, dos deslocamentos… ele é super vigiado e estagnado no tempo, e é por isso que a arquitetura de hoje não é diferente daquela que se produzia dois ou três mil anos atrás.
Como a ideia de alianças afetivas, que você fala no livro Futuro Ancestral, pode ser articulada para a construção de algo que extrapole a caverna e contribua para esse devir floresta?
A ideia de aliança afetiva ainda é percebida num limite muito humano. Esse limite ainda diz respeito às relações entre humanos, admitindo-se que são diversos, plurais, que há muitas possibilidades de ser humano, mas ainda assim dentro desse limite. Precisamos pensar, talvez, em algo mais envolvido com a materialidade do mundo que nós habitamos, para além das nossas próprias escolhas, além do nosso conforto. Porque se pensarmos apenas no nosso conforto, vamos consumir o resto do planeta rapidinho.
É a vida no capitaloceno.
É o capitaloceno. É a necropolítica. Na necropolítica não há lugar para afetos. Alianças afetivas não podem se estabelecer num ambiente tão ácido e voltado para a competição. Se chegarmos mesmo naquele ponto de não retorno de que falamos antes, nós não vamos ser capazes de imaginar aliança nenhuma no mundo. Vamos passar a habitar uma experiência de mitigar o dano. Afundou pedaço do planeta, a gente remenda…
É uma visão de mundo muito erodida: nós, humanos, ficamos parecendo bolhas sem a capacidade de fazer isso que chamamos de alianças afetivas, que é justamente nos afetar uns com os outros a ponto de produzir em nós mesmos uma experiência diferente de estar vivo, que não seja reproduzir as metrópoles, as superestruturas.
Quando paro para pensar nas grandes metrópoles, quando vejo o corpo da coisa, eu quase acho impossível a gente mudar isso…
Quase…
Quase acho impossível. Me pergunto: o que vamos fazer com tanta coisa que antes era montanha e virou entulho? Há alguns laboratórios de pesquisa que se dedicam a transformar entulho da construção civil em novos materiais construtivos, mas isso ainda é feito numa escala muito pequena e o que a gente deixa para trás é um monte de entulho.
Não é isso? Entulho, entulho, entulho. Isso não representa apenas prejuízo no sentido econômico, mas também danos para a paisagem onde ele está. É peso morto, mas prejudica o lugar, interfere no crescimento da vegetação, polui as águas, impede outros organismos de prosperarem ali.
Me lembrou a imagem evocada no início de Futuro Ancestral: o rio se cansou de ser maltratado e mergulhou nas profundezas, e ficará lá até o momento em que achar que deve aflorar novamente. Que lições arquitetas, arquitetos e urbanistas — pessoas que poderiam pensar coisas que vão além de cópias de cavernas e cidades de três mil anos — podem aprender com os rios.
A linguagem pela qual organismos como o rio se expressam é muito cifrada. Quando um rio desaparece, para nós é prejuízo, para ele, a salvação. Então, para aprendermos com ele, temos que deixar de operar apenas no campo da racionalidade e experimentar uma espécie de expansão: em vez de simplesmente operar na paisagem, passar a nos confundir com a paisagem.
Indo, de certa forma, por esse caminho, a exposição brasileira Terra na Bienal de Arquitetura de Veneza, com curadoria de Gabriela de Matos e Paulo Tavares, tomou emprestada algumas ideias suas para dizer que a resolução de certas questões do presente e do futuro passa necessariamente por um retorno a práticas ancestrais — que operam algum tipo de expansão, como você disse. Você conheceu o projeto? O que achou do trabalho?
Eu conheci esse trabalho maravilhoso que eles levaram para a Bienal e sei que o Pavilhão do Brasil foi muito prestigiado e acolhido como uma novidade nesse mundo precário em que a gente vive agora. Na Europa, com a guerra e a crise climática, o trabalho do Brasil apareceu como sopro, uma possibilidade de ampliar os horizontes daqueles que terão que responder pelo estado do mundo que vamos deixar para quem virá depois.
Futuro ancestral é uma declaração sobre o momento que estamos vivendo agora. Uma declaração de que a nossa experiência presente articula memórias e experiências passadas que nos põem numa condição favorável a realizar as mudanças.
Porque se entendemos que o futuro é ancestral, sabemos que ele contém uma espécie de cápsula do passado que nos possibilita ir além. Se considerarmos que o futuro é prospectivo, ele está lá na frente… e nós já ficamos para trás.
Em entrevista com os curadores, a Gabriela diz que é até “irresponsável” pensar nesse futuro de forma prospectiva, porque isso não propõe nenhum movimento imediato para a mudança dos modos de vida.
Exatamente! É uma arrogância, inclusive. É muita arrogância pensar que vamos lidar com aquilo que ainda não está aqui… é um jogo de adivinhação. Essa ideia de futuro prospectivo, algo lá na frente, não faz sentido. Se podemos lidar com a ideia de futuro, isso deveria acontecer no presente, agora.