OPINIÃO – Mudar a política econômica e fortalecer o SUS para evitar o caos

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O governo federal precisa revogar imediatamente o teto de gastos e a regra estabelecida para o piso federal da saúde

*Por Bruno Moretti, Carlos Ocké, Erika Aragão, Francisco Funcia e Rodrigo Benevides

“Governos devem gastar de modo massivo com maior endividamento do governo por meio de títulos e alguma impressão de dinheiro, se necessário devem converter instalações quaisquer em hospitais e fazer fábricas produzirem material hospitalar e médico” – Kenneth Rogoff, Professor de Havard e ex-economista chefe do FMI, 24/03/2020

Além da adoção das medidas preconizadas pela Organização Mundial da Saúde, mudar a política econômica e fortalecer o SUS são as alternativas mais seguras para proteger a população brasileira contra o coronavírus.

Essa crise será certamente maior do que o crash de 1929. A exemplo de outros países, o governo precisa sustentar a demanda e garantir a renda do conjunto da população, bem como o abastecimento de alimentos, remédios e produtos de primeira necessidade, mantendo as cadeias de produção e distribuição em funcionamento e coordenando o sistema financeiro, a partir do planejamento entre Estado e sociedade.

No contexto do aumento da pobreza e da desigualdade na sociedade brasileira, o governo federal precisa revogar imediatamente o teto de gastos e a regra estabelecida para o piso federal da saúde (Emenda Constitucional 95/2016) para enfrentar a recessão e o coronavírus.

Neste momento histórico, os investimentos públicos e os gastos sociais devem ser avaliados pela sua efetividade, ou seja, pelo seu efeito multiplicador na cadeia produtiva e seu impacto no bem-estar social da população e não apenas nos efeitos fiscais produzidos sobre as contas públicas: o custo de uma recessão em termos fiscais no médio e longo prazo será muito maior, se as metas fiscais de curto prazo forem priorizadas.

Deste modo, tendo em mente os espaços abertos com o Decreto de Calamidade Pública, para refrear a fase exponencial e diminuir a taxa de letalidade da doença, apoiamos as seguintes medidas em caráter emergencial:

1 (i) aplicação imediata de recursos adicionais no SUS, que poderiam ser financiados com a venda de títulos públicos, emissão de moeda e/ou utilização de parte do superávit financeiro da Conta Única do Tesouro Nacional, criando um fundo público no valor mínimo de R$ 22,5 bilhões (perda apurada nos exercícios de 2018, 2019 e 2020 em decorrência da mudança da regra do piso do SUS federal pela Emenda Constitucional 95/2016). É fundamental também suspender a regra de ouro, permitindo emissão de dívida para financiar os gastos do SUS e demais políticas públicas para enfrentar a pandemia;

(ii) alocação de tais recursos para (a) retomar o Programa Mais Médicos; (b) melhorar as ações de vigilância em saúde; (c) buscar ativamente possíveis infectados entre os grupos de risco por meio dos agentes comunitários de saúde e agentes de combate a endemias; (d) ampliar os testes rápidos (50 milhões) e PCRs (20 milhões) para mitigar as subnotificações e conter o contágio; (e) garantir insumos, equipamentos de proteção individual e respiradores nas unidades de saúde; (f) aumentar oferta de leitos hospitalares e de unidades de terapia intensiva; (g) implantar central nacional de regulação de leitos públicos e privados para organizar o fluxo de atendimento dos casos mais graves;

(iii) suspensão de todos os atos (decretos, portarias e resoluções), que mudaram o financiamento da política de saúde, especialmente aqueles relacionados à portaria 2.979/2019 do Ministério da Saúde – que instituiu o novo modelo de financiamento da atenção primária à saúde. Além de extinguir o Piso de Atenção Básica – PAB fixo, que garantia aos municípios o acesso a recursos regulares e automáticos segundo o critério populacional, a partir do mês de maio, os municípios deixarão de receber o montante correspondente ao cadastro potencial. Isso provocará uma corrida pelo cadastramento de usuários, deslocando os profissionais de saúde para funções administrativas, visando a manutenção do recebimento de recursos federais, ao invés de garantir sua presença na rede de atenção à saúde;

(iv) aprovação da Contribuição sobre Grandes Fortunas no parlamento, substituindo o dispositivo constitucional que criou o Imposto sobre Grandes Fortunas. Os recursos seriam repartidos entre união, estados e municípios e vinculados às áreas da saúde, ciência e tecnologia, saneamento básico, segurança alimentar e assistência social. Além do mais, conforme o artigo 150 da Constituição Federal, poderá ser cobrada no próprio ano da aprovação. Ela será calculada a partir de uma alíquota percentual progressiva sobre valores acima de R$ 10 milhões registrados na declaração de bens e patrimônios do imposto de renda sobre pessoa física e jurídica;

(vi) resposta com urgência das Ações Diretas de Inconstitucionalidade – ADIs, que tratam da redução dos pisos federais da saúde provocada pela Emenda Constitucional 86/2015 e 95/2016, em tramitação no Supremo Tribunal Federal. Conforme oficialmente admitido até pelos técnicos do Tesouro Nacional, não há dúvida de que a Emenda Constitucional 95 desfinanciou o SUS;

(vii) utilização de 0,5% das reservas internacionais para a importação de equipamentos de proteção individual, insumos e kits para testagem, luvas, máscaras e respiradores, especialmente para aumentar a proteção dos trabalhadores nos serviços de saúde que estão na linha de frente do combate à pandemia. É fundamental destinar recursos para a Fiocruz e para os laboratórios públicos para acelerar o desenvolvimento de kits diagnósticos, bem como participar dos esforços da comunidade científica internacional na busca da vacina e de medicamentos contra o coronavírus;

(viii) retomada dos investimentos da área de ciência, tecnologia e inovação, que ganhou força a partir dos anos 2000. Houve iniciativas importantes, visando reduzir a dependência externa na área da saúde, a partir de linhas de financiamento no BNDES, no Ministério da Saúde e no Ministério de Ciência e Tecnologia. Essa política de substituição de importação procurou desenvolver a produção de bens essenciais e estratégicos, o que poderia capacitar o país hoje a atuar com protagonismo no combate à pandemia.

Desde fins de janeiro, o governo tinha conhecimento de que o coronavírus chegaria no Brasil. Cerca de 60 dias depois, diante do aumento exponencial do número de casos e mortes, nenhum dinheiro novo foi disponibilizado pelo Ministério da Saúde: as perdas com a Emenda Constitucional 95 giram em torno de R$ 22,5 bi, sem contar com eventuais gastos extras que serão necessários para conter a pandemia, exigindo o aumento de recursos (ainda não disponíveis até a publicação deste artigo).

Estamos, entretanto, diante de uma complexa crise político-institucional. Tudo leva a crer que, sob o governo Bolsonaro, não haverá saída democrática para superação das crises sanitária e econômica. A política de austeridade fiscal do governo dificulta a construção de um acordo nacional, que permita estados e municípios colaborarem no controle da doença. Pior: em boa parte precarizados, não estão garantidas condições salariais e de trabalho seguras para os profissionais de saúde, nem serão adotadas medidas rigorosas para proteger as classes populares e os grupos vulneráveis.

Na noite de 24 de março, o discurso irresponsável do Presidente da República contra o isolamento social e a quarentena nos colocou diante da possibilidade da anomia política, do abismo econômico e do caos social. O prefeito de Milão acabou de reconhecer seu equívoco com a campanha “Milão Não Para”, que provocou milhares de mortes evitáveis, e o editorial da Revista Lancet, uma das mais prestigiadas publicações internacionais da área de saúde, cita Bolsonaro como único governante ineficaz em relação as medidas de mitigação. Estamos na contramão do que orientam as autoridades governamentais em todo mundo, que buscam estabelecer políticas de fortalecimento dos sistemas de saúde, de um lado, e de suporte à economia, de outro, a exemplo da Inglaterra, Alemanha e EUA – que injetará dois trilhões de dólares para o enfrentamento da crise.

A hora da mudança é agora!


*Bruno Moretti  é economista e assessor técnico do Senado Federal, Carlos Ocké é pesquisador do Ipea, Érika Aragão é professora do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA e presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde – ABrES, Francisco R. Funcia é professor da USCS e consultor técnico do Conselho Nacional de Saúde – CNS) e Rodrigo Benevides é economista e mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ.

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