A cientista política Fhoutine Marie afirma que as revoluções virão da micropolítica e na ação direta
Durante as eleições presidenciais de 2018, o principal movimento de oposição aos conservadorismo liderado pelo então candidato Jair Bolsonaro (PSL) foi protagonizado pelas mulheres, sob a o lema #EleNão. Já empossado, um dos primeiros escândalos, e talvez o maior até aqui, são as denúncias de desvios de recursos do Fundo Partidário de candidaturas de laranjas do PSL. Como resposta à crise, parlamentares da base do presidente apresentam agora um projeto que quer acabar com as cotas de gênero. Para eles, o problema parece ser menos a corrupção, mas a obrigatoriedade de que as mulheres avancem nos parlamentos.
Para a cientista política Marie Fhoutine, a resposta das mulheres a guinada conservadora não pode ser outra senão mais participação, mais espaços ocupados por elas. Fhoutine, no entanto, vê com pouco otimismo os embates travados dentro das Câmaras e Assembleias. “Não haverá grandes mudanças nas instituições. A batalha ali será por redução de danos”, avalia.
Por outro lado, vê na ação direta, nas transformações do cotidiano, na sororidade e na micropolítica o antídoto contra o retrocesso.
Fhoutine Marie: As candidaturas de laranjas são trágicas, e, ao mesmo tempo, chega a ser cômico o modo como o governo propõe lidar com a questão. As laranjas não nasceram nessa legislatura, e a solução, definitivamente, não é acabar com as cotas, mas aumentar a fiscalização para onde está indo o Fundo Partidário e pensar como as candidaturas femininas estão sendo construídas internamente. Ou seja, pensar dispositivos que deem conta de efetiva-las. Essas propostas deixam nítido que o governo tem um problema com as mulheres, com a participação política das mulheres.
CC: Pode ser ainda um ressentimento do movimento #EleNão, que se opunha abertamente ao presidente?
FM: Tantos as cotas como outras notificações para que os partidos distribuam a participação de maneira mais justa estão repercutindo. Apesar do #EleNão não ter provocado o efeito esperado, a gente teve um número expressivo de mulheres que se mobilizou contra o projeto do Bolsonaro. E eram mulheres de tendências partidárias diversas, mulheres sem tendência partidária, anarquistas, eleitoras do (João) Amoêdo, do (Geraldo) Alckmin.
A mobilização do #EleNão teve diversos efeitos positivos, e tem tudo a ver com os arranjos institucionais dos últimos anos. O número de parlamentares cresceu em participação feminina. Foi um crescimento de 50% no Congresso Nacional, cerca de 35% nas candidaturas estaduais, deputadas negras, trans, indígenas. Tem algo acontecendo que não se pode desprezar.
CC: Ainda assim elas ainda são minoria.
FM: Fora das instituições temos visto uma mobilização bem interessante de mulheres. Não podemos pensar a política só do ponto de vista da instituição. Temos de olhar para o protagonismo das meninas secundaristas, as mobilizações contra o assédio, os blocos de Carnaval feministas. Embora tenhamos sofrido uma derrota eleitoral, tem muito luta acontecendo. Ela não acaba, ela se fortalece.
CC: Este ano o emblema do 8 de março é “Mulheres Contra Bolsonaro”. Você acredita que é uma boa estratégia centrar fogo na figura do presidente?
FM: Pessoalmente acho problemático. Quando colocamos como bandeira mulheres “contra Bolsonaro”, “com o Lula”, estamos dando centralidade para luta em um homem, ainda que seja contra. É mais interessante pensar as mulheres mobilizadas por algo, como a proposta de Reforma da Previdência, ou ao ataque aos nossos direitos reprodutivos, que é gestado por governos conservadores em geral. Se fosse lutar só contra um cara estava fácil, a luta é contra toda uma estrutura.
Por exemplo, o pacote anticrime do Moro é uma demanda urgente, e que eu acho que a esquerda brasileira não está dando atenção. Esse é um projeto que amplia a possibilidade de assassinatos de pessoas negras e pobres, aumenta o encarceramento, e atinge especialmente as mulheres negras, porque elas são o alvo desse tipo de política.
CC: Você acredita que há uma negligência dos partidos nas lutas das mulheres, de modo geral?
CC: No Congresso Nacional parece haver um ponto de inflexão, com uma guinada conservadora.
FM: Desde que a bancada evangélica se consolidou temos visto ataques incisivos contra os direitos das mulheres, especialmente os que dizem respeito aos direitos reprodutivos, como o projeto que queria restringir a venda de pílulas anticoncepcionais. É uma investida que está em curso liderada pelo neopentecostalismo, e que tem a ver com essa ideia de que a mulher de voltar para o que eles chamam de família tradicional. É uma família com a mulher dentro de casa, e o capitalismo se ampara nesse trabalho gratuito feito pelas mulheres. São as mulheres que cuidam das crianças, dos idosos, dos doentes.
Não dá para deixar de lado o fato de que esse projeto global ultraliberal, de gestão de uma crise que é própria do capital, quer dificultar o acesso aos direitos reprodutivos femininos, a bons empregos. Ao mesmo tempo, observamos uma esquerda com muita dificuldade em propor um projeto contundente, que não seja uma grande passada de pano.
CC: Você acredita, então, que o terreno para esse conservadorismo foi facilitado pelos governos anteriores?
FM: Nas últimas eleições o que vimos foram os candidatos de esquerda se comprometendo publicamente com as igrejas em não ampliar as possibilidades de aborto, ao invés de dizer francamente que encara a questão como um caso de saúde pública, contra a mortalidade materna. Isso tem a ver com uma ideia político-partidária de que é preciso primeiro chegar ao poder para depois fazer algo. Os direitos das mulheres são os primeiros a serem negociados, sempre.
CC: Por isso é necessária a resistência a esse projeto, como tem sem falado tanto?
FM: Agora estamos em um momento em que não conseguimos enxergar avanços com essa legislatura, e isso é muito duro. Temos avanços em termos de mobilização, e isso está muito mais na ação direta do que na política institucional. Nos parlamentos a batalha vai ser por redução de danos, e não permitir que não retirarem os avanços que tivemos até aqui, especialmente no que se refere à saúde. A esperança está nas mulheres se ajudando, pensando economia alternativa, solidária. As revoluções viram no campo da micropolítica.