Os filhotes perversos da “Reforma” da Previdência

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Três anos depois de o Congresso impor corte de direitos aos aposentados, processo atinge estados e municípios. Servidores aposentados sofrem confiscos. Governos alegam “déficit” de seus sistemas previdenciários – quase sempre fictícios

Depois da queda de braço em torno da mais recente reforma da previdência, que acabou resultando na Emenda Constitucional 103, aprovada em 2019, esse pode parecer um tema velho e superado. A questão é que essa mudança não só incentivou como exigiu e estabeleceu parâmetros para várias outras reformas que se intensificaram nos últimos três anos, atingindo a aposentadoria dos servidores públicos estaduais e municipais. Para se ter uma ideia, segundo o Monitor da Previdência nos Estados, produzido pelo jornal O Estado de S. Paulo, com atualização até janeiro deste ano, 22 estados já concluíram suas reformas nos moldes estabelecidos pela EC 103, três estão em andamento e apenas dois, Rio de janeiro e Roraima, não submeteram ou retiraram de tramitação os projetos sobre o tema. Vários deles, inclusive o Rio, no entanto, já tinham feito reformas anteriores. A reportagem não encontrou dados sistematizados sobre os municípios, mas casos concretos não faltam: a cidade de São Paulo, por exemplo, aprovou duas reformas num intervalo de três anos – a última delas, em 2021, de acordo com Daniel Santos, presidente do Sindilex, sindicato que representa os servidores da Câmara e do Tribunal de Contas do município, foi feita ‘à imagem e semelhança’ da EC 103, e conseguiu avançar em medidas como a ampliação da idade para aposentadoria, que a mobilização social tinha conseguido evitar na versão anterior.

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Confirmando a atualidade do tema, ganhou recentemente as páginas dos jornais uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que apontou possíveis irregularidades na gestão da Rio Previdência, no Rio de Janeiro. A grita era para que essas denúncias não “acabassem em pizza” – o que adiantou pouco já que, até o fechamento desta edição, o relatório não tinha ido a votação no plenário da Assembleia Legislativa. Mas o volume de dados levantados sobre a estrutura e o funcionamento do sistema de aposentadoria dos servidores fluminenses traz um retrato que pode fornecer pistas importantes sobre a situação dos Regimes Próprios de Previdência em todo o país. A principal delas, segundo a advogada Helena Marroig, que acompanhou de perto a CPI da Rio Previdência como assessora do mandato do deputado estadual Flavio Serafini, é a conclusão de que é preciso pôr em dúvida – e em discussão – o discurso que afirma a existência de um déficit. “A gente ouve falar tanto que a previdência do Rio quebrou, que os estados em geral têm suas previdências quebradas. E na verdade isso não se sustenta muito a partir dos dados que a gente foi mexendo”, diz Marroig,  que completa: “Na verdade, houve um processo de desmonte do que foi o projeto original das previdências na Constituição de 1988. Todas essas mudanças foram criando instabilidade financeira e desequilíbrio dentro da previdência”.

Abrindo caminho

A verdade é que nem as mudanças nem o discurso de que a Previdência Social é deficitária no Brasil surgiram agora. Desde 1998, dez anos depois de a Constituição Federal instituir a previdência como parte da Seguridade Social, junto com as políticas de saúde e assistência social, o país passou por várias reformas, que modificaram de modo mais ou menos estruturante o direito que tinha sido adquirido no processo das lutas pela redemocratização. Em nível nacional, a mais recente se deu em 2019, com a aprovação da Emenda Constitucional nº 103. Mas o que os especialistas ouvidos por esta reportagem mostram é que as mudanças anteriores acabaram abrindo caminho para as transformações que também a previdência dos servidores públicos federais, estaduais e municipais sofreu e continua sofrendo.

E aqui surge um primeiro elemento para o debate sobre se há ou não déficit na previdência dos servidores já que, segundo muitos outros pesquisadores do tema, o cálculo que tem sido feito para argumentar sobre a insustentabilidade da previdência pública não considera exatamente as diferenças de regras e condições dessa política ao longo da sua história. O ponto central dessa distinção, de acordo com Filipe Leiria, que estudou o tema na sua tese de doutorado defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é o fato de não ter havido sempre, no caso dos servidores, a exigência de uma contribuição de parte do salário como condição para a aposentadoria. “A premissa era de que a Seguridade Social era uma despesa do Estado”, explica Leiria. É verdade que, para os trabalhadores da iniciativa privada, foi definida desde sempre uma alíquota de contribuição, a partir da lógica da solidariedade intergeracional, na qual quem tem energia para trabalhar financia o descanso daqueles que, mais avançados na idade, não têm a mesma disposição física. Já no caso dos servidores, diz Leiria, a previdência era concebida como uma despesa pública, como outra qualquer.

Essa diferença sequer configurava ainda a existência de dois regimes de previdência distintos. Foi a Emenda Constitucional nº 20, de 1998, a primeira grande reforma (ou contrarreforma, como chamam alguns críticos) dessa política no Brasil, que instituiu que a previdência deveria se organizar “sob a forma de regime geral”. E, para marcar que os servidores públicos não poderiam se filiar a ele, o texto fez, pela primeira vez, referência a um “regime próprio” sem, no entanto, caracterizá-lo ou estabelecer regras de funcionamento. A divisão mais precisa da previdência social brasileira em dois regimes, segundo o pesquisador, se deu a partir daí – antes, não existia, por exemplo, um orçamento separado para o pagamento da aposentadoria do funcionalismo, o dinheiro destinado a esse fim saía do ‘caixa’ geral do Estado. “Embora a própria Constituição de 1988 já descreva que tinha que fazer uma separação entre o que é o orçamento fiscal e o orçamento previdenciário, ela falava apenas em demonstrar [essa separação]. Na prática, era como se fosse uma despesa fiscal: você tem que pagar o salário e o benefício de aposentadoria das pessoas, que se aposentavam com paridade e integralidade”, explica.

Tudo isso pode parecer detalhe, mas não é. Após as emendas constitucionais 20 e 41, não apenas a aposentadoria dos servidores públicos passou a depender da contribuição de parte do salário como estabeleceu-se que esse regime de previdência deveria ser orientado por critérios que preservassem o “equilíbrio financeiro e atuarial”, ou seja, precisaria provar que conseguia fechar as contas não apenas ano a ano como também no longo prazo. Para tirar isso a limpo, o cálculo atuarial faz projeções futuras, levando em conta estimativas sobre variáveis diversas, como crescimento da população, expectativa de vida, produtividade e emprego.

Na avaliação de Leiria, aí já se começa a “preparar” o caminho que no futuro legitimaria medidas restritivas ao direito previdenciário mas, na prática, até aquele momento, esse lembrete da lei valia apenas como “critério de gestão”, o que significa que exigia-se a produção de relatórios que analisassem a ‘saúde financeira’ da previdência dos servidores mas isso não alterava em nada o benefício da aposentadoria a ser recebido. “[A existência de um déficit] não autorizava, por exemplo, que os governos criassem sobretaxação para aposentados e pensionistas”, explica o pesquisador. Pois foi exatamente isso que a Emenda Constitucional 103, aprovada em 2019 e vigente desde 2020, mudou. E, junto com ela, também as diversas leis que vêm reformando a previdência dos estados e municípios.

O argumento do pesquisador é que o que se plantou lá atrás está sendo colhido agora. Desde a EC 103, a existência de déficit atuarial passou a justificar a cobrança de alíquotas maiores dos servidores, alterando a base de cálculo de todo o valor que ultrapassa o teto da previdência geral, que hoje está em pouco mais de R$ 7 mil. Outra mudança foi a autorização para taxar também aposentados e pensionistas. Essas duas medidas, na avaliação de Leiria, atingem sobretudo os servidores de mais baixos salários, que ganham menos do que o teto do regime geral. Dados da última versão do Atlas do Estado Brasileiro, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), referentes a 2019, mostram que quase 58% dos servidores públicos municipais e pouco menos de 30% dos estaduais ganham salário inferior a R$ 2,5 mil. Na faixa entre R$ 2,5 mil e R$ 5 mil, portanto ainda bem abaixo do teto, encontram-se 29% do funcionalismo municipal e 33,5% do estadual. “Estamos falando de professores, policiais militares de baixa patente, profissionais de saúde… E, principalmente, mulheres, que foram as mais atingidas”, resume Leiria.

Todas essas mudanças descaracterizaram tanto o direito previdenciário dos servidores que, na avaliação de Leiria, podem levar uma parcela desses trabalhadores a abandonar o RPPS e optar pela aposentadoria no regime geral, que tem reajustes anuais e não cobra contribuição dos inativos. Para isso, basta que tenham algum tempo de trabalho na iniciativa privada anterior ao concurso. “Antes os estados tinham mais a receber do regime geral do que a pagar, porque as pessoas normalmente traziam o tempo da iniciativa privada para se aposentar no estado ou município, por RPPS. Agora, já tem RPPS que está tendo que pagar a mais para o regime geral. Inverteu a relação”, analisa.

Não por acaso, a EC 103 também inova ao estabelecer, pela primeira vez, a possibilidade de extinção dos regimes próprios – inclusive nas situações em que exista superávit. Nesse caso, o estado ou município continua se responsabilizando pelo benefício daqueles que contribuíram até a data de fim do RPPS enquanto os que ingressarem depois migram para o regime geral. Além disso, essa última reforma também proibiu que novos RPPS fossem criados.

Pública, mas financeirizada

Mas também no interior do regime próprio de aposentadoria dos servidores há divisões que o separam em dois subsistemas. Um, que ainda concentra mais beneficiários e segue mais próximo da concepção de previdência que inspirou a Constituição de 1988, é o de repartição simples. Nele, os servidores contribuem mensalmente com um percentual do salário e o governo, na condição de ‘empregador’, participa com o dobro. Assim, os trabalhadores da ativa financiam os aposentados. Esse dinheiro, no entanto, entra no ‘caixa’ geral daquele estado ou município, não fica concentrado numa conta separada. E, pelas regras, apesar de existir uma definição prévia sobre a contribuição de cada parte, se faltar recurso, o Estado deve complementar para garantir os benefícios a serem pagos. “É uma impropriedade falar em déficit no regime de repartição simples porque, com a contribuição financeira que está prevista em lei, ele nunca ficaria desequilibrado”, diz Leiria.

O segundo subsistema de previdência vigente no Brasil para os servidores públicos é o da capitalização coletiva, que é mais recente e se caracteriza, antes de tudo, por guardar o dinheiro da aposentadoria numa conta separada. Servidores e governos contribuem na mesma proporção, mas esse montante não só é blindado em relação ao caixa geral do Estado como também não se mistura com os recursos que financiam a própria previdência no outro regime, de repartição. Nem todos os estados e municípios têm o sistema de capitalização mas, quando ele existe, o que acaba acontecendo é o que se chama de “segregação de massa”, ou seja, a divisão dos servidores de um mesmo ente federado em dois grupos. Para o funcionalismo, isso significa que quem ingressa no serviço público depois da criação dessa alternativa fica no sistema de capitalização coletiva, enquanto os mais antigos permanecem na repartição simples – que não pode ser eliminada enquanto houver beneficiários – ou optam por migrar. E esse movimento também é fundamental para entender o debate sobre o déficit.

Primeiro porque os sistemas de capitalização coletiva surgem com um aporte inicial de recursos. “O Estado bota um dinheiro porque, em geral, as pessoas [que ingressam no serviço público] já têm tempo de contribuição do setor privado e, portanto, os desembolsos vêm antes de se formar a reserva”, explica Leiria, que completa: “O regime de repartição simples não teve aporte inicial, mas quando se analisa o déficit financeiro desse sistema, essa diferença passa batida”. Helena Marroig ressalta ainda que essa divisão gera não só um discurso equivocado, mas é responsável por parte do que ela considera um “desmonte” que os RPPS vêm sofrendo. “Os servidores novos que começam a entrar param de contribuir para sustentar os que hoje estão aposentados porque contribuem para um fundo separado. A segregação de massa divide os trabalhadores. Os antigos, que contribuíram a vida toda nessa lógica intergeracional, ficam sem ninguém para sustentá-los dentro daquele acordo que foi feito. Então, o Estado tem que contribuir e garantir que esses servidores que trabalharam a vida toda tenham suas aposentadorias, suas pensões, seus direitos em geral”, explica. Essa, diz, tomando como referência os dados do Rio de Janeiro levantados pela CPI, é uma das razões para o alegado déficit.

Para os cofres públicos, segundo Leiria, além da contribuição previdenciária menor, um dos importantes efeitos da capitalização coletiva é impedir o ‘giro’ desse recurso para investimentos do próprio Estado. “O grande debate no senso comum é de que a previdência era um problema fiscal. Mas era exatamente o contrário: a previdência ajudava a financiar o orçamento fiscal do Estado”, contesta. Ele explica que o subsídio cruzado, ou seja, a possibilidade de o dinheiro da previdência se comunicar com o orçamento fiscal, era possível porque, baseado na lógica da solidariedade intergeracional, o modelo de repartição simples não tem a pretensão de “formar reserva”. Já no sistema de capitalização, essa passa a ser a prioridade do dinheiro arrecadado com as contribuições previdenciárias dos trabalhadores e governos. Essa reserva, complementa Leiria, depende tanto de não se mexer no dinheiro recolhido quanto de se aplicar esse recurso de modo a aumentar o bolo – o que, inclusive, deve ‘compensar’ a redução da contribuição do Estado nesse sistema. “É um dinheiro que está indo para alavancar o mercado de capital quando poderia ir para os cofres do governo para sustentar políticas públicas e fazer investimento”, critica Helena Marroig. Isso porque, na prática, na capitalização coletiva é preciso investir esses recursos, gerando um processo de financeirização do montante que deve servir para a aposentadoria dos trabalhadores. Trata-se de uma mudança na lógica da Previdência Social – e que está longe de ser consensual.

Posição bastante crítica a esse modelo está presente numa cartilha intitulada ‘Financeirização nos Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS) nos estados: tendências enunciadas na estruturação do sistema e na legislaçăo’, publicada pelo Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior, o Andes, e produzida por um grupo de pesquisadores sob a coordenação técnica da professora Sara Granemann, da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O estudo aponta esse processo como um caminho para a capitalização plena e individual que tem no modelo da previdência privada complementar seu objetivo último. Marroig pensa parecido. “A ideia da previdência é que ela tenha uma certa sustentabilidade na medida em que você tem uma solidariedade entre gerações trabalhadoras. Ela não é um seguro privado como a previdência que você faz no banco, contribui e depois saca aquele dinheiro. A ideia é que a gente tem necessidades sociais e os trabalhadores que estão hoje em dia com capacidade de trabalhar vão contribuir para esse sistema, para no futuro também receberem e terem suas necessidades atendidas. A ideia da capitalização é totalmente diferente e gera problemas contábeis e financeiros, tanto para o Estado quanto para os próprios trabalhadores”, argumenta.

Já Filipe Leiria acredita que esse sistema se tornou necessário na medida em que o “pacto intergeracional” que sustentava a concepção constitucional da previdência está em crise num contexto em que os empregos formais têm se reduzido e a população ativa não cresce mais na mesma velocidade que as aposentadorias. Por isso, diz, a tendência mundial é um sistema que “crie reserva”. Para ele, a dependência de um processo de financeirização para fazer esse bolo da previdência capitalizada crescer não tem a ver exatamente com o desenho do sistema, mas sim com o modelo de desenvolvimento econômico do país. “O Brasil virou um paraíso de investimento financeiro, poucos países têm taxas de juros tão altas quanto a nossa”, destaca, explicando que, em função desse cenário, o montante dos fundos de previdência dos servidores – que, pela lógica da capitalização, precisa ser investido para garantir a reserva que financiará as aposentadorias – acaba sendo majoritariamente aplicado em títulos da dívida pública, que são altamente rentáveis. Ele explica que, do ponto de visto financeiro, isso não gera perda para os servidores. Não por acaso, de acordo com a cartilha do Andes, os RPPS de todos os sindicatos da sua base “estão com suas contribuições em aplicações financeiras, no mercado de capitais”. Mas, segundo análise de Leiria, o problema é mais profundo: nessa ‘ciranda’, a rentabilidade acaba se dando às custas dos cofres públicos, já que, em algum momento, a dívida que gerou os títulos terá que ser paga pelo mesmo Estado que administra o fundo previdenciário.

Mesmo essa financeirização, no entanto, não é um vale tudo. Uma resolução da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) estabelece o percentual dos recursos previdenciários que pode ser usado em cada tipo de investimento, de modo a evitar grandes volumes de aplicações que coloquem em risco o dinheiro da aposentadoria. A cartilha do Andes reconhece que esse sistema tem “regras de investimento bastante rígidas”, mas considera que nem por isso elas são “seguras e sem risco”. E, mantendo a posição crítica ao modelo de capitalização, mesmo coletivo e público, aponta o que parece compreender como uma inversão também estrutural: segundo o texto, hoje são as aplicações financeiras que “determinam o modo de ser da previdência pública”. Helena Marroig concorda que o sistema de capitalização coletiva dos servidores no Brasil “năo é dos piores”, mas argumenta que a “lógica privada” que o orienta faz com que não deixe de oferecer riscos. “Se tem uma crise econômica e o dinheiro desvalorizou, os trabalhadores perdem parte de sua previdência, não têm mais uma segurança coletiva, no sentido de o Estado proteger, uma proteção social”, alega.

Na verdade, esse risco refere-se ao montante do fundo, não ao benefício individual, já que a legislação garante que, haja o que houver, a aposentadoria deve ser paga a quem atinge os critérios necessários, como idade e tempo de contribuição. Mas aqui o caso do Rio de Janeiro torna-se exemplar. Marroig lembra o ano de 2016, no auge da crise econômica do estado, em que o governo atrasou até quatro meses o pagamento do benefício dos aposentados, sem contar a situação dos servidores da ativa. Nesse caso, no entanto, os prejudicados foram os integrantes do sistema de repartição simples, que são esmagadora maioria no estado, já que a capitalização coletiva é relativamente recente e quase não tem havido concurso público para entrada de novos servidores. Segundo ela, no Rio o sistema de capitalização tem tão poucos servidores que está sempre superavitário. Reforçando o argumento contra a financeirização que ela considera como o ponto central do modelo, Marroig ressalta que, se a questão fosse a sustentabilidade, num caso como o da capitalização do Rio, em que “sobra dinheiro”, deveria-se optar por reduzir a contribuição dos servidores. “Mas isso nem é pensado”, lamenta.

Privada, mas complementar

Aprovada na Câmara e no Senado em 2019, Emenda Constitucional 103 exige reformas da previdência nos estadosFoto: Pedro França/Agência Senado

De fato, a última reforma nacional, que acabou se consolidando na EC 103, bem que tentou dar um passo a mais na direção de uma financeirização completa – e privada – da previdência social no Brasil. A principal e mais radical proposta de mudança anunciada no projeto pensado pelo Executivo em 2019 era substituir o que existe hoje, incluindo regimes geral e próprio, por um sistema de capitalização em que cada trabalhador contribui sozinho para sua aposentadoria futura, numa espécie de poupança de longo prazo administrada por instituições bancárias e financeiras privadas. O principal exemplo mundial desse modelo – que Leiria define como “de um único pilar contributivo” – é a experiência do Chile. “Deu no que deu”, critica o pesquisador, referindo-se às muitas denúncias de fracasso desse sistema, vocalizadas, por exemplo, durante os protestos que ganharam as ruas do país entre 2019 e 2020. Mas esse não foi o único caso: de acordo com um estudo divulgado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 2018, 18 dos 30 países que reformaram seus sistemas previdenciários para priorizar ou tornar exclusivo esse modelo de capitalização privada voltaram atrás nas mudanças.

No Brasil a proposta foi recusada, mas a versão aprovada da EC 103 deu um passo a mais, além dos muitos que já tinham sido dados, no incentivo à previdência privada. De forma inédita, o texto obriga todos os estados e municípios a oferecer esse ‘serviço’ aos seus servidores, como uma previdência complementar.

Reforçando a tese de uma linha de continuidade entre as diversas reformas da previdência que o Brasil promoveu e continua promovendo, essa obrigatoriedade de agora está diretamente ligada às mudanças que acabaram com a aposentadoria com salário integral para os servidores públicos  que ingressaram a partir de 2003 e estabeleceram para os regimes próprios o valor referente ao teto do regime geral para quem ingressou depois de 2012. Isso porque o complemento da previdência privada é voltado para os trabalhadores que, na ativa, ganham acima do teto e querem manter esse mesmo nível de rendimento após a aposentadoria. No nível federal, para isso foi criado o Funpresp. Ao longo do tempo, alguns estados e municípios também implementaram as suas previdências complementares, mas, com a EC 103, isso se ampliou para todos os entes federados.

Uma das principais conclusões a que a tese de doutorado de Filipe Leiria chega é, exatamente, que, do ponto de vista da “racionalidade econômica”, essa determinação não faz o menor sentido. “Qual o sentido de colocar um regime de previdência complementar em municípios onde a maioria das pessoas sequer recebem acima do teto do regime geral? Nenhuma”, questiona, explicando que para fazer investimentos que tragam rentabilidade é preciso ter “massa suficiente de pessoas”. Prevendo isso, a EC 103 autorizou que, para ofertar esse serviço aos servidores estaduais e municipais, sejam feitos convênios com outras entidades já existentes de previdência complementar.

Mesmo sendo privada, a previdência complementar voltada para os servidores não é igual àquela que qualquer trabalhador pode contratar num banco ou instituição financeira. A diferença é que, também na previdência privada, o funcionalismo público conta com um patrocínio público. “Para cada um real que o servidor aporta, o Estado também aporta um real e isso fica em uma conta individualizada, vinculada ao servidor. Pode a entidade administradora do regime complementar quebrar que a conta dele está preservada, ele vai levar para uma outra administradora”, explica Leiria. Mas ele alerta que, como parte de uma “relação contratual”, essa contribuição estatal pode ser retirada a qualquer momento. Não por acaso, diz, o atual presidente da Previc, a Superintendência Nacional de Previdência Complementar instituição vinculada ao Ministério da Economia que fiscaliza as entidades do setor, já opinou contra esse patrocínio alegando que ele fere os princípios da concorrência. “O que se quer é passar essa reserva, essa poupança do trabalhador para o setor financeiro. E o caminho que se vem construindo é desconstituir as reservas e forçar as pessoas a terem que buscar outras formas que não mais essas estatais”, opina.

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