Pochmann: O Brasil e as correntezas do presente

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Dez anos após junho de 2013, reivindicações por políticas públicas não foram digeridas pelo Estado. Segue a tendência ao curtoprazismo. Se não for revertida, crise da democracia se aprofundará e ultradireita pode pescar em águas turvas

A praga viral que consumiu milhares de vida e comprometeu a qualidade de vida de outros tantos completou três anos desde o seu início no Brasil. Diferentemente da tragédia da Grande Gripe “espanhola” de 1918, que praticamente não alterou a trajetória política da República Velha (1889-1930), nem mudou comportamentos no interior da sociedade fundamentalmente agrária daquela época, a recente pandemia do coronavírus trouxe transformações profundas ao país.

Tanto assim que não se constata o pleno retorno à normalidade anterior ao ano de 2020. Pode-se mencionar, por exemplo, o curso de um novo normal que se processou e se processa tanto sobre os circuitos produtivos e distributivos como no modo de vida da população.

Na época da pandemia da gripe espanhola, por exemplo, brasileiros renomados e inspiradores da década de 1910, como Villa Lobos, Lima Barreto (Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá), Manuel Bandeira (Carnaval) e outros continuaram produzindo como se a trajetória fosse inabalável. Na política, por exemplo, o Ministério da Saúde até então inexistente, somente foi criado nos anos 1930, quando a urbanização começou a ser acelerada com a constituição do Estado moderno e as políticas de industrialização nacional.

Na atualidade, a digitalização da sociedade brasileira ganhou importante impulso durante a pandemia da Covid-19, com a difusão do acesso aos recursos tecnológicos. Assim como a rotina das empresas foi impactada, o comportamento humano se alterou pelas possibilidades ampliadas de realização de diversas atividades pelas plataformas digitais.

No caso do poder público, cabe saber o quanto a aprendizagem acumulada no período implicou em transformações profundas no seu modo de funcionamento e atuação. Inacreditável seria buscar o retorno ao antigo normal de suas atribuições, embora ainda não exista no país uma política nacional de reorganização do Estado brasileiro.

De todo modo, isso não seria exceção. Basta recordar que o país está prestes a completar um decênio das jornadas de junho de 2013 que sacudiram a sociedade brasileira. Mesmo assim, as reivindicações abertas naquela oportunidade seguem sem respostas governamentais concretas até os dias de hoje.

As demandas populares por saúde e educação “padrão FIFA”, bem como o transporte público de qualidade em referência às lutas pelo direito pleno à cidade se mantiveram intocáveis. A implementação do Plano Nacional de Mobilidade Urbana anunciado na época permanece como retórica sem materialização efetiva.

Também a crise representacional evidenciada na época diante do descrédito ao sistema partidário não teve praticamente nenhuma resposta por parte dos poderes da República (legislativo, judiciário e executivo). De fato, a urgente e fundamental reforma no sistema de representação política dos interesses da sociedade segue adormecida.

O ciclo político da Nova República iniciado nos anos 1980 permitiu avançar o campo democrático como nunca antes visto no Brasil. Apesar disso, a prevalência de certo primitivismo de compreensão e atuação permitiu impor centralidade a questões secundárias como se fossem as principais da nação.

Exemplificação disso tem sido a radicalização e absolutização de certos temas que se difundem no interior de um país crescentemente dilacerado por polarizações generalizadas, de forma agressiva e fragmentada. Ao invés da luz, prevalece a quase escuridão dos atrasos e superficialidades que, sem a liberdade de pensamento e expressão, sofrem a cegueira imposta pelo sistema mediático nacional, fomentada por receitas vulgares e distante de soluções concretas.

Nas circunstâncias histórico-sociais objetivas, com a extrema direita fortemente encorpada e protagonista do processo de digitalização da sociedade, as emergências do curtoprazismo reinam. Predominam preocupações quase que superficiais e parciais identificadas como um fim em si mesmo, verdadeiras correntes do presente deslocadas do entendimento mais amplo das necessidades humanas após os tempos das jornadas rebeldes de 2013 e da tragédia pandêmica iniciada em 2020.

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