Pochmann: O império americano incomodado

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Frente ao avanço chinês, e a recuperação militar da Rússia, Washington recicla a teoria da contenção, em busca de sobrevida. Porém, suas truculências e sanções podem redesenhar a geopolítica — e aproximar nações do eixo de influência de Pequim

No seu terceiro livro, “Desintegração”, lançado no ano passado, Andrei Martyanov discute os fenômenos político, social e econômico do colapso atual do império americano em simultânea ascensão chinesa e recuperação militar da Rússia. Em virtude disso, a competição pela influência mundial tem-se acirrado, sobretudo desde a iniciativa chinesa da Nova Rota da Seda, que molda, atualmente, 150 países num grande cinturão político de natureza econômica, comercial, financeira e de infraestrutura. O império está incomodado.

Além disso, o peso dos Estados Unidos como superpotência, existente há quase um século, vem sendo continuamente abalado mais recentemente nas áreas de inovação, inteligência artificial, robótica pelo avanço chinês, bem como nas corridas espacial e de armamento cibernético. A própria situação pandêmica da Covid-19 também terminou sendo um componente de intensificação da concorrência entre as nações.

Diante das sucessivas derrotas acumuladas pelos Estados Unidos desde a crise financeira de 2008, o avanço chinês se torna uma perspectiva cada vez mais concreta e insuperável. Talvez seja por isso que, após três décadas do término da primeira Guerra Fria (1947-1991), a teoria da contenção de nações, originalmente proposta por George F. Kennan (A Rússia e o Ocidente, 1969), vem sendo cada vez mais revisitada.

No passado, a Guerra Fria teria sido adotada pelos EUA como forma de combater o expansionismo dos ideais e da presença física da União Soviética no mundo. Logo em 1946, por exemplo, o termo “Cortina de Ferro” passou a ser adotado como uma espécie de cordão sanitário para separar os países controlados pelos Estados Unidos dos demais, sob a influência da União Soviética.

Um ano depois, a Doutrina Truman, conduzida pelo presidente estadunidense Harry Truman (1945-1954), definiu um conjunto de políticas externas voltadas a interferir por meio militar diretamente sobre o avanço do comunismo, ao mesmo tempo em que oferecia ajuda aos países economicamente frágeis. Para isso, os EUA abandonaram a posição inicialmente definida na Conferência de Ialta (1945) com Josef Stalin (URSS) e Winston Churchill (Inglaterra) na repartição do mundo em países satélites a partir do pós-guerra, sendo a Alemanha e o Japão reduzidos a meras economias agrárias.

Assim, o Plano Marshall (1948-1951) se constituiu na ajuda financeira de reconstrução dos países da Europa Ocidental enquanto garantia da presença capitalista em contraponto ao avanço soviético. Da mesma forma, já no âmbito da polaridade da Guerra Fria, foi criada em 1949 a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) formada por 30 países, para ajuda política e militar. Atualmente, os países da OTAN representam 9% da população global e respondem por cerca da metade do gasto militar do mundo.

Por fim, promoveu-se a internalização do contexto da Guerra Fria nos países, conforme a política do macarthismo, adotada entre 1950 e 1957 como patrulha anticomunista. Assim, houve a prevalência da atuação do Estado como provedor de repressão à possível ameaça soviética através de intensa propaganda do medo e de espionagem a indivíduos e instituições.

Nos dias de hoje, a teoria da contenção de Kennan poderia ser a última cartada dos EUA para tentar evitar o desfecho da crescente presença chinesa no mundo. Mas, por ser muito diferente do socialismo de Estado experimentado pela União Soviética, o socialismo de mercado chinês não se propõe, pelo menos até agora, a ser um polo oposto ao capitalismo. Pelo contrário.

Ao seguir as regras dos mercados, a China tem avançado cada vez mais, por sua capacidade de competir e superar concorrentes nas mais diversas áreas da economia capitalista. Tanto assim que vários países, inclusive os EUA, adotam medidas antimercado para defender suas empresas e negócios diante da competitividade superior da China, como no caso notório da tecnologia 5G da Huawei.

De forma mais contundente, o conjunto de respostas dos EUA, em articulação com os países da OTAN, adotado frente ao conflito Rússia-Ucrânia parece se assemelhar ao embrião de uma possível segunda Guerra Fria. Com as sanções econômicas de exclusão do sistema de pagamentos global Swift, congelamento de reservas e bens de cidadãos, bloqueio do comércio externo e abandono de empresas privadas e públicas ocidentais, a Rússia se junta ao grupo de 18 países, como Cuba, Irã, Venezuela, Coreia do Norte e outros.

Sem alternativa à punição conduzida pelos EUA, que não seja a aproximação direta e efetiva com a China, o mundo passa a observar um novo redesenho geopolítico, cujos efeitos ainda não são muito bem conhecidos. No curso de uma segunda Guerra Fria, o tema do desenvolvimento, que ficou esquecido desde os anos 1990 com o fim da primeira Guerra Fria e predomínio do neoliberalismo, talvez possa voltar à agenda dos governos mediante o novo mundo multipolar.

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