Por que precisamos de soberania em IA

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Nova tecnologia mudará o mundo, para (muito) melhor ou pior. No entanto, no Ocidente quase toda a inovação é feita por mega-empresas, o que produz enormes riscos civilizatórios. Tudo pode e precisa ser diferente – inclusive no Brasil

Por Ana Mielke

Título Original:
Inteligência Artificial: para além da inovação é preciso pensar a estratégia

Quase 340 mil famílias de patentes relacionadas à inteligência artificial (IA) foram registradas entre 1960 e meados de 2018. Apenas entre os anos de 2011 e 2017, o número de patentes no campo da IA cresceu em uma proporção de 6,5 vezes. Só que a maior parte das organizações que depositaram patentes – 26 entre as 30 maiores depositantes – foram empresas, e apenas 4 universidades ou organizações públicas de pesquisa.

Os dados são da World Intellectual Property Organization (Organização Mundial para a Propriedade Intelectual, em português) e são reveladores da ausência (ou insuficiência) do investimento do setor público para o desenvolvimento e a implementação da inteligência artificial. E da dificuldade de países na periferia do capitalismo, entre os quais o Brasil, em desenvolverem estratégias para a construção de soberania tecnológica e de dados.

Desde que a doutrina neoliberal se tornou hegemônica no ocidente, a principal tarefa do Estado passou a ser facilitar a relação entre usuários (antes pretensamente cidadãos, agora apenas consumidores) e as empresas privadas (responsáveis pelo provimento dos bens ou serviços). A alienação de ativos públicos pertencentes à União com a concessão de serviços ao setor privado, característico dos processos de privatização que se estabeleceram sobre países do Sul Global, tornou impositiva a adoção de normas para a livre concorrência de um lado, e os direitos dos consumidores, de outro.

A partir daí, iniciativas de regulação se tornaram absolutamente necessárias diante do poder exercido pelas empresas privadas neste novo cenário. A regulação, e as disputas em torno dela, passaram a ocupar parte central no jogo democrático circunscrito ao marco econômico neoliberal. A fórmula marco regulatório + agência reguladora se tornou essencial para proteger os interesses em disputa, em especial, para evitar que direitos humanos, econômicos e sociais fossem atropelados pelo interesse de corporações privadas.

São inúmeros os exemplos de como a regulação pode produzir acordos comuns que visem impedir concentração de mercados (regulação econômica), infrações ou abusos na oferta do serviço (regulação de processos) ou mesmo proteger o direito dos consumidores (caso de legislações com enfoque nos usuários). E o recente crescimento da manipulação de imagens com IA generativa e o já conhecido fenômeno da desinformação, que impactam a vida de pessoas comuns e a sociedade, de um modo geral, são suficientes para justificar a criação de normativas específicas para os usos e aplicações da IA.

As cinco maiores empresas de tecnologia do mundo: Apple, Alphabet, Amazon, Microsoft e Meta lucraram US$327 bilhões em 2023. O crescimento significativo das chamadas Big Techs nas últimas décadas vem ampliando os debates em torno da necessidade e criação de normas específicas para regular processos e garantir obrigações de transparência, responsabilidade e ética por parte destas empresas.

A mais recente legislação a este respeito é o AI Act, aprovado em fevereiro pela União Europeia. Uma legislação pioneira que reúne um conjunto de regras para o desenvolvimento e a implementação da IA nos países do bloco, inclusive, estabelecendo obrigações objetivas para os usos específicos da IA. No Brasil, algumas propostas para regular a IA também estão em tramitação no Congresso Federal.

Paralela à necessidade de estabelecer normas restritivas ao poder sem limites das Big Techs, em algumas regiões pelo mundo, em especial em espaços acadêmicos e/ou circunscritos à militância por uma internet livre, começa a se (re)organizar um debate sobre a importância da autonomia e da soberania da pessoas e países em relação às empresas de tecnologia. Afinal, por que na última década parte da sociedade passou a normalizar que apenas as empresas privadas devem ser detentoras da expertise de produção de tecnologia?

Esta suposta naturalização não é privilégio do Brasil. E boa parte do mundo parece ter sido convencida de que não existe outro caminho senão o de consumir tecnologias proprietárias. Em 2017, quando uma pesquisa realizada pela Fundação Mozilla revelou que 55% dos internautas no Brasil achavam que o Facebook era a internet, esta normalização já estava presente. E atualmente, vem se intensificando, chegando ao ponto de governos e instituições públicas pouco ou nada questionarem sobre o uso de softwares proprietários.

O sociólogo Evgeny Morozov falou sobre esta tendência em seu livro “Big Techs: a ascensão dos dados e a morte da política”. A obra revela algumas estratégias realizadas pelas empresas de tecnologia para construir confiabilidade e legitimidade, não apenas entre seus usuários, como também nas comunidades e territórios onde se instalam. Essas estratégias são diversas, vão desde a oferta de conexão de internet em territórios até o financiamento direto de pesquisas em instituições públicas, exposições em museus e investimento em artistas e espetáculos. Para o autor, é preciso “destruir aos poucos a hegemonia intelectual da Big Tech no que se refere às ideias de políticas futuras e do papel que a tecnologia vai desempenhar nelas” (2018).

Romper com esta hegemonia intelectual não é tarefa simples, sobretudo quando as empresas de tecnologia propagandeiam inovações que podem solucionar quase tudo (tecno-solucionismo) e usuários, ávidos por soluções, incorporam a IA de forma voluntária. Além disso, boa parte dos debates públicos sobre IA acabam circunscritos a questões como manipulação de imagens, geração de conteúdos e desinformação (com destaque para deep fakes), o que é importante, mas não abarca as diferentes dimensões e desafios colocados pela IA em nosso tempo. Os meios de comunicação acabam contribuindo muito para isso.

Estimativa apresentada pelo Fórum Econômico Mundial, por exemplo, alerta que cerca de 85 milhões de postos de trabalho serão perdidos até 2030 para a automação de processos. Setores ligados ao mercado financeiro apostam em 300 milhões de empregos perdidos. O desafio dos governos brasileiros, em níveis federal, estadual, municipal, para garantir a manutenção destes postos de trabalho se torna ainda mais difícil quando se trata de um país com um longo histórico de elevadas taxas de desemprego.

Paradoxalmente, as poucas iniciativas que vêm sendo esboçadas para reverter o impacto da IA sobre o mercado de trabalho ainda reforçam uma tendência a priorizar ações para qualificação e/ou capacitação de pessoas para usos e aplicações da IA. Políticas voltadas ao letramento ou a capacitação funcional são fundamentais para reduzir o impacto da redução de postos de trabalho, mas é preciso traçar estratégias que aliem a criação de novos postos de trabalho a um processo de reindustrialização.

É preciso que as políticas públicas estejam alinhadas a uma ideia de um Estado produtor de tecnologias e não apenas consumidor ou usuário final de tecnologias proprietárias. E a formação profissional de excelência carece obrigatoriamente de investimento pesado em ensino, pesquisa e extensão, principalmente nas universidades.

Estas instituições poderiam, inclusive, ser espaços para abrigar data centers e institutos de pesquisa e tecnologia seguros, públicos e soberanos. Também é preciso investir em infraestrutura pública, “parques tecnológicos”, capacidade de processamento, e financiar inovações. Em outras palavras, esta política precisa estar ajustada ao projeto mais robusto de desenvolvimento econômico e tecnológico para o país.

Se como afirmou Morozov, o primeiro passo é romper o monopólio intelectual e narrativo das Big Techs, desnaturalizando a ideia de que as tecnologias são dispositivos produzidos exclusivamente por empresas privadas. Não seria arriscado dizer que o investimento público para a produção de tecnologias e construção de infraestruturas seria o passo subsequente rumo a uma maior autonomia em relação às empresas privadas.

O desenvolvimento de IA também permite a ampliação do acesso aos serviços públicos, com maior eficiência e integração em áreas como saúde, educação, transporte público, entre outros. O uso de IA poderia, inclusive, possibilitar a realização do antigo sonho de implementação do governo aberto, com transparência e controle público sobre ações e orçamentos. A utilização de sites e aplicativos para acessar estes serviços não pode, no entanto, acontecer à revelia do respeito à privacidade e à proteção de dados.

Não há dúvidas de que a célere inserção da IA no contexto atual, especialmente como tecnologia generativa, foi possível apenas diante do aumento da capacidade de processamento dos computadores e pela existência de extensos bancos de dados. Estes, por seu turno, são consequência do intenso extrativismo de dados operado pelas Big Techs nestas primeiras décadas do século XXI. Assim, fazer cumprir a Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD (Lei nº 13709/2018) e dar concretude à atuação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), que patina desde sua efetivação em 2022, são tarefas essenciais.

Já ficou evidente que os dados são essenciais para fins de políticas públicas e por isso é preciso também buscar soluções mais ousadas para sua coleta e tratamento. Experiências interessantes, que garantem a privacidade e colocam os cidadãos no controle sobre os usos de seus próprios dados podem orientar novos projetos no Brasil, em especial neste ano em que acontecem as eleições municipais. As cidades são territórios férteis para a experimentação de modelos inteligentes de ação pública baseados em tecnologia, desde que estes estejam a serviço da garantia de direitos e da cidadania, e não de corporações.

Exemplos assim encontram-se espalhados pelo mundo. Todos já amplamente documentados. É o caso do DECODE, projeto piloto desenvolvido entre 2017-2019 em Barcelona e Amsterdã, que tinha como lema “Giving people ownership of their personal data” (Dando às pessoas a propriedade de seus dados pessoais, em tradução livre). Outros como MYDATA, desenvolvido em Helsinque, e Datacités, em Paris, também são modelos a serem estudados. Mais exemplos de iniciativas baseadas em padrões abertos, modulares e interoperáveis e que respeitam a privacidade podem ser encontrados em diferentes países.

Por fim, além de romper com hegemonia intelectual das Big Techs e promover investimento pesado em tecnologias, é preciso que haja uma ação coordenada das políticas voltadas à inovação tecnológica e IA. A transversalidade da pauta, faz com que ela seja objeto de trabalho de inúmeros ministérios (em âmbito federal) e de secretarias (estaduais e municipais). Uma ação coordenada com governança participativa de diferentes atores têm potencial de produzir e consensuar princípios éticos, políticos e estratégicos para a produção de tecnologias voltadas ao desenvolvimento humano, econômico, social e ambiental.

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