Porque os juízes não conseguem interpretar igualmente as mesmas normas?

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A tradição multi-identitária do Brasil, somada às complexidades sociais, econômicas e culturais, conflitam diariamente com o requerimento de uso de uma linguagem unívoca nas decisões judiciais. Carentes de realidade, as teorias da decisão judicial que pululam no Brasil, tanto na academia quanto na jurisdição, desprezam que, no conjunto, as decisões (re)produzidas em foros e tribunais não guardam qualquer coerência entre si. Esse conjunto de heterogeneidades impede que se possa dar credibilidade a qualquer discurso que ovacione a integridade e a coerência do Direito.

Mesmo quem se dispõe a criticar, ainda que realize importantes constrangimentos à quem tem o poder-da-caneta, concentra suas atenções exclusivamente no aspecto normativo das decisões judiciais que, grosso modo, se ocupa de mostrar como o Direito deve ser aplicado pelos juízes, desprezando a verdadeira fábrica de produção da diferença que é o Judiciário brasileiro.

Verdades normativas, previsibilidade e garantias foram instrumentos teóricos contra o temor da discricionariedade judicial, já que a partir do Direito poderia resistir, sub-repticiamente, o autoritarismo arrogante e violento dos militares, mesmo depois da redemocratização. Por mais que os constitucionalistas brasileiros reclamem, a fragmentação do discurso normativo constitucional obedece nossa tradição jeitosa e malandra, feita “democraticamente” por quem, no final da corda, comanda até onde a corda vai, e se vai. A publicização das decisões judiciais brasileiras, especialmente nos últimos anos, exerceu um préstimo importante para colocar as decisões e exercício de julgar na agenda pública.

Apesar de já sabermos que juízes devem cumprir a Constituição, garantir direitos fundamentais e manter os pilares da democracia (entre outros slogans sedutores), uma pergunta fundamental segue com respostas insuficientes: porque os juízes não conseguem falar a mesma língua para interpretar normas que são iguais?

As interpretações que deveriam garantir segurança são atravessadas por sotaques incompreendidos, por narrativas estratégicas, por interpretações politizadas da santa linguagem universal da Constituição, por adaptações em nome da compreensão ou da pressa, por detalhes dos detalhes dos recursos dos recursos, por jogos e jeitinhos, por particularidades microfísicas, por sulcos tão não-evidentes quanto não-normativos dos textos.

Falta de coerência normativa, desencontros entre vieses hermenêuticos, antinomias na relação entre princípios e regras (e estes entre si), o debate (envelhecido) entre direito e moral, incapacidade de percepção da influência do inconsciente na decisão, reflexos econômicos no Direito, arbitrariedades subjetivas travestidas de objetividade, são apenas alguns dos dilemas experimentados pelas atuais teorias que tentam conhecer e (quase sempre) controlar a decisão judicial.

Na medida em que as teorias da decisão tentam tornar matemática uma atividade necessariamente subjetiva, tais intentos, um a um, dia-a-dia, se tornam letra morta nos imensos compêndios que buscam oferecer a terra prometida da estabilidade das decisões judiciais. Nesse sentido, há que se subscrever a posição de Alexandre Morais da Rosa[1], que diz: “quem se ilude é mais feliz, na medida em que se abraça com teorias que são tão fajutas quanto completas”. Esse cenário – feliz ou infelizmente – não se coaduna com uma cobrança de cumprimento pleno da Constituição, nem com a correlata crença de que pode haver uma recepção homogênea de qualquer metodologia pretensamente salvadora da decisão judicial.

Posner[2], a partir do pragmatismo, é certeiro: “mesmo os teóricos que defendem um juiz capaz de seguir, mecanicamente, determinadas cartilhas de cumprimento da normatividade, sabem que a maioria deles não faz isso na maioria de suas decisões.” Derrida[3] confirma a suspeita ao dizer que “cada caso é um caso, cada decisão é diferente e requer uma interpretação absolutamente única, que nenhuma regra existente ou codificada pode nem deve absolutamente garantir. Pelo menos, se ela a garantir de modo seguro, então o juiz é uma máquina de calcular.”

Como o modo de decidir dos juízes é afetado por atravessamentos subjetivos, criam-se zonas de penumbra onde fica facilitado e menos escancarados os desmandos normativos, conscientes ou não por quem julga. Assim, soluções exclusivamente normativas oferecem respostas tão boas e constrangedoras quanto ineficientes e inúteis. Essa ineficiência é resultado, segundo Posner[4], da doença da falta de realidade de boa parcela dos juristas e teóricos do Direito.

É a partir desse contexto de fragmentação do discurso normativo constitucional que novas perspectivas de análise precisam ser incorporadas às teorias que pretendem analisar o complexo fenômeno da decisão judicial. Essa é a intenção do livro Decisão Judicial no Brasil: narratividade, normatividade e subjetividade (EMais, 2018)[5], que busca agregar ao cansado paradigma normativista, a perspectiva narrativista da decisão judicial, a partir de José Calvo González, bem como a perspectiva subjetivista, que analisa aspectos como a retórica, a sedução da linguagem, as influências do inconsciente e da psicologia das massas na decisão judicial. Afinal, é com outros olhos que podemos ver outras coisas, não?

 

Paulo Ferrareze Filho é doutor em Filosofia do Direito (UFSC), professor de Psicologia Jurídica e psicanalista em formação (EFFP).

 

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