Os conflitos por água no Brasil explodiram na última década e registraram um crescimento de 513% em dez anos. Os dados foram levantados pelo UOL com a CPT (Comissão Pastoral da Terra), ligada à Igreja Católica, que desde 2002 contabiliza esse tipo de conflito. Em 2018, foi alcançado o maior número desde o início da catalogação, com 276 casos.
O aumento em número de casos se refletiu também no de vítimas. No ano passado, foram 73 mil pessoas afetadas, também o maior registro da série. Além disso, nos últimos dez anos, 13 pessoas foram mortas em decorrência de problemas envolvendo conflito por água –cinco desses assassinatos aconteceram entre 2016 e 2018.
“Um fator para explicar esse aumento é econômico: ele veio depois da crise financeira da primeira década deste século. Houve um aumento na busca pelos recursos naturais, as commodities agrícolas e minerais ou mesmo da terra bruta. Essas áreas passaram a ter mais interesse e se valorizaram, principalmente aquelas onde há recursos como água. Isso aumenta os conflitos”, afirma Rubem Siqueira, da direção nacional da CPT.
Desde que começaram as contagens da entidade, foram 18 assassinatos, 19 tentativas de homicídio e 92 pessoas listadas como ameaçadas.
Há mais de 30 anos, a CPT divulga anualmente o relatório intitulado “Conflitos no Campo”. A edição de 2019, com dados do ano passado referentes a todos os tipos de violência rural, será divulgada no próximo dia 14 de abril, em Brasília.
Mineração lidera ranking de causas
Os dados específicos dos conflitos por água ainda mostram que as atividades de mineração são as principais responsáveis pelos conflitos, por poluir rios ou reservatórios, reduzir o acesso ou impedir que comunidades busquem água. Há casos também de impedimento de uso de açudes e barragens, por obras públicas ou por aquisições privadas.
“Os impactos da mineração ocorrem nos aquíferos e nos corpos d’água, seja porque atinge a água do subsolo ao extrair o minério, seja porque tem as barragens de rejeitos. Ainda temos muita consequência do desastre da barragem do Fundão, em Mariana”, conta Siqueira.
Os estados que mais registraram problemas foram Minas Gerais e Bahia, com 65 casos cada um, seguidos por Sergipe (55), Pará (37) e Espírito Santo (20). Entre os públicos afetados, 24% eram ribeirinhos, 20% pescadores e 14% eram pessoas afetadas por barragem.
‘Herdeiros’ dos rejeitos do Fundão
Em 2018, os conflitos ocorreram em decorrência de diversos problemas, mas quase metade por conta dos danos causados pelo rompimento em 2015 da barragem do Fundão, em Mariana (MG); e pelas atividades da empresa Hydro Alunorte, em Barcarena (PA). Juntos, somaram 110 dos 276 conflitos.
No caso da barragem do Fundão, os danos inclusive se espalharam por dois estados. No Espírito Santo, foram 19 conflitos por água em áreas afetadas pela chegada dos rejeitos. Em Minas, foram outros 59 casos.
Wellington Moreira Azevedo presta assessoria técnica a atingidos pelos rejeitos em Governador Valadares (MG). Ele afirma que são muitos os problemas que ainda que atingem os moradores.
“O que os atingidos mais reclamam é sobre a desconfiança da água, com muitas reclamações de alergia, por exemplo. Temos também muitos que se mudaram da cidade, com problema para atrair empresas pela falta de água de qualidade. Além disso, houve queda dos valores do imóveis”, afirma.
“Nos distritos, há problemas sérios onde a lama chegou. As pessoas não conseguem plantar nessa terra onde o rio passou com os rejeitos. Esses metais contaminaram fortemente o local e até as vacas não seguram suas crias”, completa.
Alumínio no Pará
Dos 37 conflitos por água registrados no Pará em 2018, 32 teriam sido por conta da Hydro Alunorte, que explora alumínio em Barcarena.
Em abril do ano passado, o MPF (Ministério Público Federal) no Pará informou que tinha 44 investigações abertas para apurar denúncias de irregularidades relacionadas à instalação e à operação das maiores empresas do polo industrial de Barcarena. Uma delas foi para apurar a suspeita de vazamento de efluentes da refinaria em 17 de fevereiro do ano passado. Foi pedido o embargo de uma das bacias de rejeitos da refinaria da Alunorte.
No ano passado, a tensão fundiária pela dificuldade de acesso à água de qualidade teria resultado em um assassinato. Segundo a CPT, a vítima foi Paulo Sérgio Almeida Nascimento, 47, líder da Associação dos Caboclos, Indígenas e Quilombolas da Amazônia.
No dia 12 de março, ele teve a casa invadida e levou quatro tiros. Outra liderança também foi procurada no local, mas não estava presente.
Segundo Robert Rodrigues, assessor do Cáritas Diocesano na região, os problemas com a produção de alumínio já são conhecidos das comunidades de Barcarena e de Abaetetuba há três décadas e causam problemas graves. “Somos comunidades ribeirinhas, e os três principais rios [Murucupi, São Francisco e Pará] estão contaminados. Eles têm os afluentes que vão dar em diversas ilhas, em cerca de 200 comunidades na região.”
“Se um rio adoece, o povo adoece junto. Se o rio morrer, a gente morre junto”
Rodrigues ainda dá como exemplo o rio Dendê, que teria sido poluído por rejeitos jogados pela empresa. “É um rio de que os pescadores dependiam e agora eles viraram mototáxis, autônomos ou estão desempregados. A gente percebe a poluição ao ver rio: ele está branco, como um leite.”
Outro lado
Procurada pelo UOL, a Alunorte informou que desconhece os dados e a metodologia da CPT e diz que “sua relação com os vizinhos da refinaria é pautada pelos valores da companhia e pelo respeito à legislação de proteção aos direitos do cidadão e do meio ambiente”. “A Alunorte está em constante diálogo com as comunidades e autoridades. Todos os projetos somam investimentos de R$ 675 milhões até 2020, entre melhorias operacionais, estudos e investimentos sociais”, afirma.
A empresa diz ainda que, em janeiro deste ano, “a Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Sustentabilidade do Estado do Pará emitiu uma nota técnica atestando que a refinaria Alunorte pode operar com segurança em toda a sua capacidade de produção”.
Segundo a Alunorte, inspeções do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e de órgãos estaduais “confirmaram que não houve vazamentos ou transbordo dos depósitos de resíduos de bauxita da refinaria”. “Este fato foi confirmado também por análises realizadas pela força-tarefa interna da empresa e por consultores ambientais independentes, sem evidência de contaminação no período de chuvas intensas ocorridas em fevereiro de 2018”.
Já a Fundação Renova, que foi criada pela Samarco para atuação na área ambiental afetada pelos rejeitos do Fundão, informou ao UOL que já é possível notar avanços na recuperação do rio Doce e, neste ano, a qualidade da água “continua no foco da Renova com ações em todo o território atingido”.</p><p>A fundação afirma que água do rio Doce “pode ser consumida com segurança desde que seja tratada, segundo a Agência Nacional das Águas”.
Até o momento, diz, foram realizadas melhorias em 13 estações de tratamento de água em Minas e Espírito Santo, além da implantação de sistemas de captação alternativa em dez localidades ao longo do trecho impactado.
“Ao todo, o programa de monitoramento da água receberá R$ 42 milhões para a continuidade das ações em 2019”, afirma a fundação, citando que constrói sistemas alternativos para localidades que captam diretamente da calha do Rio Doce. “Para 2019 estão previstos aportes de R$ 129,2 milhões que serão destinados à conclusão dos serviços de perfuração e recuperação dos poços tubulares que serão utilizados com captação alternativa.”
A fundação ainda diz que mantém um abastecimento coletivo por meio de caminhão-pipa em vária localidades, além do abastecimento individual realizado no território entre Fundão e rio Doce.
Já as obras de saneamento vão receber quase R$ 82 milhões do orçamento total do programa –estimado em R$ 500 milhões. A empresa diz que isso vai “permitir com que municípios que não têm estrutura para tratar esgoto ajudem a mudar a realidade do rio Doce”.