Geógrafo aponta: vivemos tempos de desespero. Direitos sofrem ataques – e a moradia é capturada como ativo pelo capital financeiro. A vida urbana e cotidiana é alienada. As metrópoles precisam de novos sentidos – e ela vem das lutas pelo Comum
Publicado 02/06/2023 às 16:27 – Atualizado 02/06/2023 às 20:01
David Harvey em entrevista a Mathieu Dejean e Romaric Godin, com tradução de Marcelo Bamonte no Blog da Boitempo
David Harvey é uma das figuras mais importantes do marxismo contemporâneo. De passagem por Paris, reuniu-se com Jean-Luc Mélenchon no dia 12 de abril, a convite do Instituto La Boétie. Grande crítico do capitalismo e incansável intérprete do pensamento de Karl Marx, geógrafo e pensador acerca dos efeitos concretos do capital na sociedade, este britânico de 88 anos sempre fora um observador atento da realidade econômica, social e geográfica.
Além desta reunião e de uma série de palestras na França, David Harvey concordou em responder perguntas do Mediapart sobre a situação atual do capitalismo, sua relação com o ex-candidato do La France insoumise (LFI) às eleições presidenciais, e Marx.
Sua reflexão sobre o capitalismo inclui uma importante teoria da crise. A partir de 2020, parece começar uma nova crise, que acaba de experienciar um novo episódio com a crise bancária. O que você acha da situação atual do capitalismo?
Gostaria de salientar alguns fatos para responder a essa pergunta. O primeiro é que, hoje, é muito difícil imaginar qual será o futuro do capitalismo porque não está claro que rumo tomará a China, que é um ator crucial. A minha opinião é que a China evitou em 2007-2008, ao capitalismo, uma depressão comparável à dos anos 1930. Desde então – e antes da chegada da covid-19 – a China representava cerca de um terço do crescimento mundial, o que é mais do que o Reino Unido e Estados da Europa juntos. Portanto, é impossível, nas atuais circunstâncias, prever o rumo que o capitalismo tomará sem saber o rumo que a China tomará.
O segundo fato que me parece importante é que, dentro do mundo capitalista, houve grandes colapsos financeiros desde a década de 1980. Em cada crise, os bancos centrais responderam aumentando a liquidez. Agora, caminhamos para a próxima crise que exigirá ainda mais liquidez. Então, na minha opinião, estamos em uma situação perigosa em que o capital está se acumulando como resultado dessas transfusões de dinheiro. Tudo parece um Esquema Ponzi global1 e os esquemas Ponzi geralmente terminam muito mal. A dificuldade aqui é que não há como os Estados suportarem uma crise financeira se as finanças ocidentais forem baseadas em um esquema Ponzi…mas então a questão é se eles podem conter essa crise, e não tenho certeza se podem.
O terceiro fato importante para mim é a questão das transferências internacionais de tecnologia. Desde a década de 1950, os Estados Unidos não impediram, e às vezes até encorajaram, as transferências de tecnologia para o Japão, Taiwan e Coreia do Sul. Ao fazer isso, eles obviamente tentaram conter a China em sua forma comunista e cercá-la com uma rede de países de renda média alta.
O que aconteceu quando a China se abriu? O capital do Japão, da Coreia do Sul ou de Taiwan investiu maciçamente na China, trazendo consigo transferências de tecnologia do passado. Agora os Estados Unidos estão tentando bloquear a transferência de tecnologia para a China, o que me parece estúpido. Em parte porque é impossível, mas também porque se você bloqueia o desenvolvimento da China, que salvou sistematicamente o capitalismo, você não está fazendo nada de muito positivo para o próprio capitalismo.
De fato, esses três elementos aparecem como as principais contradições do capitalismo contemporâneo. Em seu trabalho, você insiste na natureza endêmica das contradições e, portanto, das crises no capitalismo. Segundo sua obra, essas crises sempre assumem a forma de processos violentos de desvalorização do capital. Com essa forte intervenção do Estado, fica a sensação de que esse processo está travado. O que você acha disso?
Não. Na verdade, esse processo de desvalorização já está acontecendo. Há desvalorizações contínuas. Mas a verdadeira questão é: quem perderá valor? Em 2007-2008, nos Estados Unidos, sete milhões de famílias perderam suas casas. Eles perderam 80% de seus bens devido à grande perda de valor de suas casas, principalmente a comunidade afro-americana. Ao mesmo tempo, os bancos foram salvos. Houve uma transferência massiva de direitos de propriedade para os bancos em decorrência dos despejos. Esses direitos foram vendidos a baixo custo, graças a resgates bancários, para empresas como a Blackstone. A Blackstone é, agora, a maior proprietária de direitos do mundo. A perda de valor das pessoas nos Estados Unidos acabou no bolso da Blackstone. Stephen Schwarzman, que dirige esta empresa, é agora um dos maiores bilionários do mundo. E ele tem sido um dos principais apoiadores de Donald Trump. Então, você tem que escolher: salvar os bancos ou salvar as pessoas. E desde a década de 1970 a escolha dos governos sempre foi resgatar os bancos. Então, o que a gente vê é a desvalorização do patrimônio e da poupança das pessoas.
E hoje?
Hoje vejo outros processos importantes de desvalorização. Por exemplo, não se sabe exatamente quantas pessoas perderam dinheiro durante a crise cambial. Mas os investidores individuais podem ter perdido até quarenta bilhões de dólares. Muitos ricos, como atletas, incentivaram as pessoas a investir nesses ativos, garantindo-lhes altos retornos. E essas pessoas colocam sua renda nessas moedas de computador. Agora o mercado desabou e eles perderam dinheiro.
Algo semelhante está acontecendo na China com a crise do desenvolvimento imobiliário. Xi Jinping disse que o mercado imobiliário é para viver, não para especular, mas muitas pessoas especulam na China. No caso chinês, as pessoas compraram ações de projetos futuros antes mesmo de começarem. As pessoas compraram até cinco ou seis apartamentos e aproveitaram o aumento do preço de mercado entre a compra e a entrega. Mas quando a empresa principal, Evergrande, faliu, muitos de seus andares ficaram inacabados. As pessoas se viram tendo que pagar parcelas de crédito por algo que não existia. É por isso que houve uma greve de depreciação na China, o que foi muito interessante. O governo então teve que concordar em tomar medidas sobre o assunto e terminar as construções. Essas coisas são difíceis de analisar em detalhes. Mas o que se pode deduzir é que uma crescente concentração de riqueza em 1% ou 10% da população aumenta a centralização do capital em torno de empresas como Blackstone ou BlackRock. E, para mim, a ameaça de desvalorização reside nesse fenômeno. O Credit Suisse foi adquirido pelo UBS, dois ou três outros bancos foram resgatados nos EUA, acho que haverá mais… Então a desvalorização do capital está acontecendo em uma escala já significativa. Governos e bancos centrais estão preocupados com o que chamam de “contágio” e, por isso, tentam conter a crise. Veremos até onde eles podem chegar sem emitir novas ondas de liquidez, enquanto os bancos centrais tentam sair da flexibilização quantitativa.
Assim como Jean-Luc Mélenchon, com quem você debateu recentemente, você destina, em sua teoria, um lugar importante à cidade. O que aproxima você dele neste momento?
Acho que compartilhamos a crítica à mercantilização da cidade. A crise imobiliária é global. Há quase sessenta mil desabrigados em Nova York e as famílias estão amontoadas em apartamentos apertados porque não podem pagar nada melhor. Há um boom imobiliário que equivale a construir moradias para as classes que podem especular, sem fazer nada para a massa de pessoas que estão desesperadas por moradia digna. Devemos controlar os aluguéis e acabar com a mercantilização da habitação. Mas, com o neoliberalismo, tudo é mercantilizado. Por isso não acho que tenha chegado o seu fim: educação, saúde ou mesmo moradia ainda são muito mercantilizados. Não vejo nenhum partido político lidando com essas questões, com exceção de Mélenchon e La France insoumise, e há muitas outras coisas em que concordamos.
Vocês também têm em comum o fato de integrarem a alienação do tempo em suas críticas da vida urbana cotidiana…
De fato, penso, como Henri Lefebvre, que as pessoas estão alienadas das condições da vida cotidiana, e em particular do tempo roubado pelo desenvolvimento do capitalismo. Por isso fico desesperado ao ver que ainda existem programas de esquerda que só focam nas condições materiais de vida.
Quando se fala em alienação, fala-se de um sentimento de perda de sentido que o enorme aumento da propaganda burguesa – por meio de shows, filmes, entretenimento – não consegue nos fazer esquecer. Não acho que as pessoas estejam satisfeitas com seu estilo de vida. A insegurança no trabalho tem muito a ver com isso. Nos anos 1960, quando as pessoas tinham empregos estáveis, posições consolidadas, vizinhos que conheciam e encontravam na rua, era mais fácil encontrar sentido na vida. Hoje tudo se torna frágil. Precisamos de um projeto político que se encarregue dessa questão e do direito à cidade.
A teoria pós-marxista de Mélenchon sobre a “era do povo” é influenciada pelos filósofos Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, que enxergam o “povo” como o novo motor da história, e não mais a classe trabalhadora. Qual é a sua posição sobre este ponto de vista?
Não concordo com eles, mas acho que o que Mélenchon está caminhando em uma direção diferente. Sempre me pareceu que a esquerda fetichiza a luta de classes nos estabelecimentos manufatureiros e tende a tratar os movimentos sociais urbanos, como a luta contra a gentrificação, como elementos secundários. Minha versão da teoria marxista é que esses elementos fazem parte de um todo. Quando alguns falam em “circulação da capacidade produtiva”, vejo os trabalhadores lutando contra as empresas de cartão de crédito, contra os proprietários, contra as empresas farmacêuticas ou de telefonia móvel. Para mim, faz parte da luta de classes. Quando Laclau e Mouffe dizem que temos que ir além da ideia tradicional que temos do proletariado, concordo com eles, mas continuo trabalhando em bases marxistas, enquanto Laclau, em particular, tende a querer descartar a ideia marxista como uma criança com a água do banho.
A propósito, não gosto muito da palavra “populista”, mas entendo o que Mélenchon quer dizer quando argumenta que precisa de um movimento que aborde tudo o que está errado na vida das pessoas, e não apenas a classe trabalhadora tradicional, mesmo que esta ainda seja importante. Conversando com ele, não acho que ele se sente particularmente ligado ideologicamente a Laclau e Mouffe, mas que ele queria algo amplo o suficiente para construir um partido político e também, de forma mais geral, um movimento social em torno das transformações de todas as formas de vida urbana, não somente das fábricas manufatureiras.
Você diz que a luta contra a alienação deve ser integrada em um programa político, mas um programa político com vocação majoritária na sociedade pode ser construído lutando contra a alienação da maioria da população?
Sim, a menos que haja um problema a resolver. Populações alienadas não necessariamente apoiam programas de esquerda, elas podem se tornar fascistas e, de fato, há ampla evidência de que elas se moveram mais para a extrema direita do que para a esquerda ultimamente.
A esquerda deve capturar essa raiva e mobilizar essas populações passivo-agressivas. Infelizmente, a esquerda não faz isso. Na Grã-Bretanha, ao menor sinal de raiva, o Partido Trabalhista recua, condenando os “extremistas”. Quando três parlamentares trabalhistas ousaram realizar um piquete recentemente, foram expulsos pela liderança do partido! O Partido Trabalhista está decidido nisso. Então, acho que podemos aprender com Mélenchon que, pelo que sei, ele compartilha dessa raiva e não tem medo dela: ele sabe de onde ela vem.
Em O Neoliberalismo: história e implicações, você escreveu que ele só pode sobreviver tornando-se violento e autocrático. Não é isso que vemos hoje na França na decisão de Macron diante das mobilizações contra a reforma da previdência?
Sim, é contra isso que estamos lutando, claramente. Estamos nos aproximando do fascismo dos anos 1930, é contra isso que temos que lutar. Tudo indica que a França se encontra em um beco sem saída, entre um poder surdo e uma mobilização exausta pela repressão.
Você, que trabalhou com movimentos revolucionários e sua dimensão urbana, acha que uma revolução do tipo do século XIX ainda pode acontecer hoje?
Certamente a situação hoje é radicalmente diferente do que era no século XIX. Não há mais a possibilidade de invadir a Bastilha ou o Palácio de Inverno. Se fôssemos atacar algo, teria que ser os bancos centrais, mas o que faríamos uma vez lá dentro? (risos). Durante a Comuna de Paris, os insurgentes, ao contrário, protegeram o Banque de France, percebendo seu erro tarde demais. Hoje, o capitalismo está organizado de tal forma que, em alguns aspectos, quase parece grande demais para entrar em colapso. Mesmo que alguém seja a favor da transição para o socialismo, imagino que ainda desejaríamos ter telefones celulares, computadores e, portanto, a internet. Mas como eles são feitos e quem os faz? Essas empresas estão bem estabelecidas. É possível que, se desabassem, não haveria mais computadores nem telefones celulares. Se isso é socialismo, pode apostar que as pessoas vão pedir a volta do capitalismo! As pessoas me criticam quando digo isso, mas, de forma realista, você pode imaginar uma sociedade socialista que preferiria rejeitar computadores, ferramentas de comunicação, inteligência artificial do que usá-los? Vamos pensar sobre isso.
Dado que é difícil revolucionar o cotidiano urbano e que existe uma consciência ecológica cada vez maior, não acha, como Kristin Ross, que as revoluções vão começar agora no campo, nas zonas que devem ser defendidas?
Toda a história do capital está repleta de movimentos alternativos desse tipo. Eles não são absurdos ou inúteis. Esses movimentos podem ser a semente para a construção de uma alternativa real. Se eu pudesse planejar tudo, faria as pessoas saírem da metrópole, trabalharem longe da metrópole – agora é possível – , que as estruturas comunitárias sejam ecológicas, que cada um tenha seu próprio terreno para plantar hortaliças. É uma resposta importante aos problemas colocados pela agricultura capitalista. Morei na Grã-Bretanha durante a Segunda Guerra Mundial, quando metade da produção de alimentos vinha das hortas! Há muito que se pode tirar dessas alternativas. Mais uma vez, isso vai me causar problemas com os marxistas ortodoxos, porque às vezes eu digo coisas que me fazem parecer um anarquista! (risos)
Na verdade, você é mais Kropotkin do que Marx!
Sim, e Élisée Reclus! Gosto muito deles. Gosto muito da frase de Henri Lefebvre quando perguntado por que ele era marxista e não anarquista: “Sou marxista para que um dia possamos todos viver como anarquistas!”. É uma resposta muito boa. Sou um anarquista antiquado, gosto de ler Murray Bookchin, Kropotkin. Élisée Reclus merece ser incorporado, e aprimorado, em nossas considerações. Isso provavelmente faz de mim uma espécie de herege.
Você tem feito muito para ajudar o pensamento marxista a sobreviver ao rolo compressor neoliberal. Recentemente, publicou A Companion to Marx’s Grundrisse (2022) [Um guia para os Gundrisse de Marx]. Por que ainda é importante, para você, ler Marx e falar sobre seu pensamento?
Pode-se dizer que sou um pouco obsessivo! A primeira razão é que não apoio a corrente hegemônica da economia contemporânea. É tão errado! Acho que Marx construiu uma compreensão muito mais precisa e relevante do capital e da economia do que os economistas burgueses. Eu quero desafiá-los. Não é fácil, porque eles têm dinheiro, têm mídia, têm “credibilidade”. Mas vamos dar exemplos. David Ricardo tinha uma teoria do valor-trabalho. Muitas pessoas que trabalham nesta tradição olham para a situação e dizem: se o trabalho é a fonte de todo valor, como é que o trabalho é tão mal remunerado? É uma questão moral óbvia. Isso deu origem ao “socialismo ricardiano” na década de 1840, que deu origem ao socialismo de John Stuart Mill. John argumentou que não podemos fazer nada com a produção, mas que podemos redistribuir o máximo de valor possível para as pessoas que o produzem. Thomas Piketty, Elizabeth Warren e Bernie Sanders fazem parte dessa tradição.
Marx não apreciava essa tradição porque ela não levava em conta a produção. Mas ela levanta uma questão moral fundamental, que se tornou muito forte no movimento cartista da década de 1840. Naquela época, os economistas marginais diziam: não devemos mais pensar em valor apenas a partir do trabalho, mas sim agregando o valor da propriedade, do capital e do trabalho. A importância desses três fatores de produção deriva de sua relativa escassez: se os capitalistas temem a escassez, têm direito a receber muito mais do que o trabalho, que é abundante. Os chefões de Manchester ficaram entusiasmados com essa nova teoria econômica porque ela erradicava a questão moral, e a teoria de John Stuart Mill só sobreviveu através de algumas formas de social-democracia desde 1945. O capital, ainda hoje, se baseia nessa teoria! Ele legitima taxas de retorno de renda superiores às do capital, a ponto de haver excesso de capital. Então, deveria haver um reequilíbrio a favor do trabalho, mas é claro que isso não está acontecendo. Se você disser a um economista, em qualquer faculdade, para levar a sério essa teoria do valor, eles vão rir na sua cara! É ridículo. Portanto, temos que voltar a essa questão moral. Porque, uma vez levantada, as pessoas começam a se questionar e, a partir daí, pode-se passar para a próxima etapa, que é levantar a questão da destruição da produção capitalista. É por essa razão que Marx oferece uma alternativa. Ele pensa que o capital não é algo, como pensam os economistas burgueses, mas um processo no qual ele assume diferentes formas. Tem uma flexibilidade incrível. Por outro lado, Marx me é muito útil para entender os fenômenos da urbanização. Por exemplo, Marx explica que os capitalistas investem em atividades improdutivas de propósito, para evitar o excedente de produção criado por seus investimentos. Veja a urbanização contemporânea nos Estados do Golfo, é bastante reveladora! Os capitalistas investem em ativos inadimplentes, a taxas enormes, para obter lucro. Eles fazem isso em parte por razões ecológicas, porque, caso contrário, a pressão sobre o meio ambiente seria catastrófica. Meu objetivo é difundir uma teoria marxista compreensível, ser um pedagogo, para que os sindicatos e os movimentos sociais se apropriem dela. De certa forma, esta é a razão pela qual a hegemonia marxista entrou em colapso na década de 1980: era muito sofisticada, não tinha uma base real para explicar o que estava acontecendo na vida cotidiana. Acho que essa barreira está prestes a ser superada.
Entrevista publicada no site Mediapart em 18 de abril de 2023. Tradução do espanhol por Marcelo Bamonte para o Blog da Boitempo.
Nota
1 Um esquema financeiro fraudulento. [N.E.]