‘Legítima defesa da honra’: por que é urgente o STF derrubar argumento que inocenta feminicídio

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Formada maioria pela inconstitucionalidade da tese, Suprema Corte deve finalizar julgamento definitivo nesta terça-feira (1º)

Escrito por Luana Barros, Bruno Leite politica@svm.com.br 

PONTOPODER

Convencido de que está sendo traído, um homem ataca a própria companheira com golpes de faca com a intenção matá-la. O caso hipotético ilustra uma tese utilizada com recorrência pela defesa de acusados em julgamentos de casos de feminicídio ou de violência contra a mulher no Brasil, a chamada “legítima defesa da honra”. 

A prerrogativa é analisada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pode ganhar um desfecho nesta terça-feira (1º), durante a primeira sessão da Corte no segundo semestre deste ano.

O tema está em discussão na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 779, ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT). O uso do argumento está suspenso desde 2021, por conta da concessão parcial de uma medida cautelar pelo relator do processo, o ministro Dias Toffoli. 

Na ação movida, o PDT sustenta que Tribunais de Justiça anulam ou validam vereditos do Tribunal do Júri em que réus processados por feminicídio são absolvidos com base na tese. A prática, segundo a legenda, legitimaria a absolvição de réus que, comprovadamente, praticam feminicídio com base no fundamento em questão.

A confirmação da decisão liminar, por unanimidade, pelo plenário do STF aconteceu em uma sessão virtual em março daquele ano e foi como um presente do Mês Internacional das Mulheres.

JULGAMENTO DEFINITIVO

O entendimento de Toffoli na época em que deferiu a medida foi de que a “legítima defesa da honra” excluía a configuração de crimes e afastava a aplicação da lei penal. Agora, em 2023, o Supremo deu início ao julgamento definitivo do mérito da ação que discute o uso da tese.

Em 30 de junho, data da última sessão do plenário do primeiro semestre, os membros formaram maioria para declarar a inconstitucionalidade da justificativa. Na oportunidade, o ministro relator reafirmou a posição que o fez conceder a liminar dois anos antes.

“A chamada legítima defesa da honra corresponde, na realidade, a recurso argumentativo-retórico odioso, desumano e cruel utilizado pelas defesas de acusados de feminicídio ou agressões contra mulher para imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões, contribuindo imensamente para a naturalização e a perpetuação da cultura de violência contra as mulheres no Brasil”, atribuiu o Toffoli.

Acompanharam o voto do relator, em prol da retirada da tese no rol de argumentos albergados pela legítima defesa, os ministros André Mendonça, Nunes Marques, Alexandre de Moraes, Roberto Barroso e Edson Fachin.

Objetivamente, ao ser declarada inconstitucional, a “legítima defesa da honra” não poderá ser aplicada em nenhuma das fases de um processo penal do tipo, seja ela a pré-processual ou a processual. Sob pena de nulidade do ato e do julgamento, a argumentação também não poderá ser apresentada perante o Tribunal do Júri.

ARGUMENTO LIGADO A FATORES MORALISTAS

Consultada pelo Diário do Nordeste, a professora e pesquisadora em violência de gênero e feminicídio, Geórgia Oliveira, afirma que a legítima defesa é um instituto do direito penal, mas a de “defesa da honra” não está prevista na legislação.

“É uma tese defensiva e interpretativa, parte desse instituto que garante a uma pessoa que tenha sido vítima de algum tipo de injusta agressão, o uso dos meios moderados para se defender”, explica Geórgia.

De acordo com ela, que também é mestra em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC), a prerrogativa está baseada em trechos anteriores ao código penal.

“Isso, ainda no século XIX, caiu da legislação, mas mesmo que não fosse mais previsto que o homem poderia lavar sua honra, havia esse tipo de tese que interpretava a legítima defesa para fazer com que a responsabilidade penal fosse isentada”, diz.

O uso dela no Tribunal do Júri, conforme a estudiosa, obteve muito sucesso em eximir da responsabilidade penal os feminicídios. A fala da jurista reforça ainda com o argumento do relator do caso na Suprema Corte, uma vez que, aceito, o argumento retira a ilicitude de crimes contra mulheres.

A docente acrescenta que há um fator que liga o fundamento da “honra do homem” a valores patriarcais, ao pudor e à moralidade. “A legislação brasileira previu a submissão das mulheres, seja ao pai, seja ao poder do marido”, lembra a especialista. 

A tese, apesar de ser debatida com mais evidência nos dias recentes – sobretudo em razão do julgamento do STF e iniciativas dos demais órgãos de Justiça –, é alvo de diversas críticas desde os anos 1920, seja pelas controvérsias envolvendo a legitimidade quanto pela submissão de casos do tipo a júris populares, formados por pessoas sem formação jurídica específica.

“É muito interessante porque a gente tem essa visão maniqueísta de que o passando sempre foi extremamente anacrônico, extremamente preconceituoso e que não tinha ninguém que falava contra esses preconceitos”, contesta Oliveira, citando um histórico de atuação de movimentos, inclusive feministas, que reivindicam uma postura contrária a aplicação da tese.

DISPARIDADE DE GÊNERO E PUNIÇÃO

A gênese da interpretação que os ministros do Supremo concluirão o julgamento na próxima terça está inserida em uma realidade de disparidade de gênero. A professora Janaína Penalva, que é membro da coordenação do Centro de Estudos em Desigualdade e Discriminação da Universidade de Brasília (UnB), explica que, do ponto de vista histórico, é bem recente a consideração normativa de que a mulher é um sujeito de direitos.

“Durante os últimos dois séculos, a mulher no Brasil era, inclusive legalmente, uma espécie de propriedade do homem. Elas não tinham sequer a possibilidade de agir com relação ao seu próprio patrimônio, não tinham capacidade civil de fazer contrato, participar de relações comerciais e da sua própria vida”, correlaciona Penalva, pontuando a influência disso na atualidade.

Segundo Janaína Penalva, o arsenal de dispositivos legais que sustentam a subjugação feminina também foi considerado como um reforço para a punição de comportamentos que destoassem dos valores moralmente aceitos.

Ao menos dois notórios em que a tese foi utilizada pela defesa dos acusados circulam nos anais recentes do sistema jurídico brasileiro. Um deles é o da morte da socialite mineira Ângela Diniz, em 1976, pelo seu então namorado, o empresário Doca Street. O outro foi o assassinato da cantora Eliane de Grammont, em 1981, cujo autor foi o também cantor Lindomar Castilho, do sucesso “Você é Doida Demais”.

Nos dois episódios citados, os advogados dos réus alegaram que seus clientes foram motivados por aspectos abstratos como paixão ou ciúme.

Dada a compreensão histórica, a traição – ou a suspeita dela – seria assim uma atitude passível de castigos, algo socialmente aceito em uma realidade em que as mulheres, até mesmo juridicamente, não possuíam autonomia.

“A violência contra a mulher, seja o feminicídio ou a violência doméstica, geralmente, acontece porque a mulher exerceu sua autonomia sexual”, acrescenta a entrevistada. “No fundo dessa história toda, o primeiro ponto é a liberdade de escolher como quer viver”, finaliza.

INÉRCIA JURÍDICA

A Constituição Federal de 1988 atribui ao Supremo Tribunal Federal a competência pela decisão de ações como a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), invocada visando evitar ou reparar lesão a preceito fundamental resultante de ato do poder público.

Conforme esclarece Nartan Andrade, delegado da Polícia Civil do Ceará e professor de Direito na Universidade de Fortaleza (Unifor), no caso da “legítima defesa da ordem”, esse procedimento foi acionado em função da necessidade de um reparo do ordenamento.

“Qual é o questionamento que vinha se discutindo ao longo dos anos? Era se essa tese defensiva poderia ser usada no júri, sobretudo no tocante ao feminicídio, a crimes contra a honra envolvendo a violência doméstica”, expressa, dando conta de controvérsias na constitucionalidade.

 

 

O debate que está sendo colocado, reflete o entrevistado, busca uma adaptação à realidade, visto que a tese da “legítima defesa da ordem” se mostra anacrônica e não coaduna com o ordenamento em vigor, que estabelece preceitos como a dignidade da pessoa humana, a proteção à vida e a igualdade de gênero.

Andrade, no entanto, discorda da ideia que o judiciário tenha demorado na análise de tal instrumento de defesa. “Temos várias decisões no âmbito do Supremo Tribunal de Justiça e do STF que já afastavam essa tese, mas ainda tinha decisões, sobretudo nos tribunais do juri”, defende.

Na visão dele, a decisão em torno da inconstitucionalidade se somará à Lei Maria da Penha e aos órgãos públicos para uma mudança cultural quanto à proteção e defesa da mulher.

“Nós brasileiros, apesar de entendermos que não existe essa submissão há muitos anos, precisamos muitas vezes que haja uma positivação disso, mediante uma norma”, destacou, exemplificando sobre o impacto positivo dos demais mecanismos no abandono de um ideário patriarcal.

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