Pochmann: Os bárbaros antidesenvolvimentistas

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Ditadura e neoliberalismo implodiram tradição que se formava: a dos intelectuais orgânicos do Estado, comprometidos com o desenvolvimento nacional. Carreira pública foi trocada por lógica de privatizações, terceirizados e desprezo às maiorias

O Estado brasileiro se encontra contaminado por uma elite instruída de natureza antidesenvolvimentista, capaz de se mover e se legitimar por valores mercantis adotados na relação com o público, na tomada de decisões e no exercício de poder atribuído a especialistas. Na versão de Ortega y Gasset (A rebelião das massas), o especialista seria o bárbaro que ao saber de tudo a respeito de um pequeno fragmento da realidade se manteria alienado da totalidade política, cultural e filosófica, o inverso do intelectual.

Por se fundamentar condicionado ao receituário neoliberal, o corpo social dirigente do Estado atual, seja civil, seja militar, revela apego aos princípios autoritários que decorrem de decisões assumidas distantes do controle ou questionamento da população ou, até mesmo, da representação político-eleitoral. No máximo, a validação possível entre seus pares dos especialistas.

Mas nem sempre foi assim. Três anos depois de ocorrida a Independência Nacional, Dom Pedro I decretou, em 1825, o emprego do título “doutor” aos bacharéis em Direito. Retribuía aos senhores proprietários de terras e escravos o apoio ao Império com a concessão de fazendeiro-doutor aos filhos da oligarquia agrária formada nas faculdades do país, sobretudo Pernambuco, Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, conforme identificou Gilberto Freyre (Sobrados e mucambos).

Um pouco depois, já no período regencial (1831-1940), a primeira guarda nacional foi constituída. Mas para isso, a sua hierarquia, especialmente atribuída aos títulos de tenente a coronel, foi posta à venda aos proprietários de terras e de escravos ao valor de até 200 mil réis anuais, permitindo criar a base social do coronelismo, com fortes implicações na política brasileira.

Em plena decadência do patriarcalismo agrário, a substituição do Império pela República não alterou substancialmente o corpo social que se deslocou do Estado absolutista para o Estado mínimo liberal capitalista. Mesmo com algumas formulações importantes no profissionalismo civil e militar, a denominada “nobreza doutoral” conseguiu manter a sua funcionalidade no novo regime de governo, porém submetida à crescente crítica política e social.

Para Lima Barreto (A República dos Bruzundangas), por exemplo, o projeto de vida almejado pela elite instruída era o de estar fora do país, mesmo atuando numa espécie de país do exílio, negado ao conjunto dos trabalhadores de vida miserável. Além disso, os detentores da titularidade de doutores permaneceram se apropriando, em grande medida, de parcela das subvenções públicas, percentagens de concessões, entre outros privilégios.

Com a Revolução de 1930, a construção do Estado moderno passou pela revogação, em 1942, do decreto de D. Pedro I que garantia a titulação de doutor aos formados em faculdades. A estruturação de um novo corpo social civil e militar da administração pública se voltou à tarefa de pôr em marcha a nova sociedade urbana e industrial através da centralização administrativa e constituição de carreiras de acesso por concurso a mais de 150 mil funcionários de Estado.

Para isso, destacou-se como peça especial do desenvolvimentismo brasileiro a constituição especial no seio da administração pública federal dos intelectuais orgânicos do Estado, segundo a formulação de Alexandre de Freitas (O Brasil desenvolvimentista e a trajetória de Rômulo Almeida). Ao destoar do passado da elite instruída, negando a operação dos poderes estabelecidos por instituições e entidades públicas ao controle da ordem estabelecida, colocou em marcha a estruturação de outro projeto de país, quando o povo começou a fazer arte do orçamento público.

Na ditadura civil e militar (1964-1985), contudo, o propósito dos intelectuais orgânicos do Estado foi interrompido, pois substituído pela moldagem tecnocrática, segundo revelaram Eugênio Gudin (“Intelectuais ou homens de Estado?” em Reflexões e comentários) e Roberto Campos (“Em defesa dos tecnocratas” em Do outro lado da cerca). Para isso, a educação brasileira foi profundamente reformada, concedendo centralidade à formação dos especialistas atrelados à ideologia tecnocrática do capital humano, favorável ao processo de modernização autoritária.

Com a primazia do receituário neoliberal adotado desde os anos 1990, o regime jurídico único para a Administração Pública instituído pela Constituição de 1988 foi por água abaixo. A substituição dos concursos pela terceirização nas atividades consideradas meio à função pública (segurança, transporte, asseio e conservação, secretaria e outros) seguiu a lógica da privatização do setor público estatal.

A reforma gerencial do Estado permitiu a crescente presença de organizações não governamentais, bem como a internalização de critérios mercantis nas atividades de serviços públicos civis e militares. Acreditava-se, assim, que os novos princípios da gestão pública superariam os vícios burocráticos e as práticas clientelistas e patrimonialistas, em conformidade com a perspectiva de Bresser Pereira (Da Administração Pública Burocrática à Gerencial).

Sob o manto do antidesenvolvimentismo, a mentalidade mercantil se estendeu e dominou postos essenciais de comando dos aparelhos do Estado brasileiro, tendo as “ilhas de excelência” operado cada vez mais autonomamente, como um fim em si mesmas. As recentes experiências do lavajatismo e de militares mais presentes no interior da administração pública indicam o quanto a elite instruída se encontra contaminada pelo privatismo, autonomismo e entreguismo, destoando dos interesses e das necessidades da maioria da nação.

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