Regulação da mídia: a invisibilidade de uma agenda essencial à democracia

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A falta de maturidade de propostas de regulação da mídia democrática é diretamente proporcional à necessidade de mudança no setor. Confira o sétimo artigo da série especial Proprietários da Mídia no Brasil

Enquanto o Brasil se mobiliza nas mais polarizadas eleições desde a redemocratização, uma agenda passa ao largo da preocupação de eleitores, autoridades e especialistas: a regulação dos meios de comunicação. Das candidaturas, apenas duas (Fernando Haddad, do PT, e Guilherme Boulos, do PSOL) trazem propostas sobre a regulação do setor com vistas à promoção da diversidade e pluralidade. Por outro lado, Jair Bolsonaro (PSL) pontua em seu programa ser contra “qualquer regulação ou controle social da mídia”.[1] Ciro Gomes, em debate na TV Aparecida em setembro, disse que não via viabilidade política para aprovação de um novo marco legal.

As eleições de 2018 são mais uma demonstração da marginalidade do tema na classe política brasileira. Parte ignora o setor como objeto de política pública. A fração do espectro político à direita entoa o cântico que busca colar a pecha de que uma legislação mais democrática seria uma forma de censura e violação da liberdade de expressão. Candidaturas de centro, como a de Ciro Gomes, param na justificativa da “falta de correlação de forças”. A fração mais à esquerda traz propostas. No caso da candidatura do Psol, há baixas perspectivas de avanço na disputa eleitoral. E no caso do PT, concorrente com chances no pleito, o programa traz promessas importantes, mas que nos catorze anos das gestões anteriores do partido não prosperaram.

A falta de maturidade de propostas de regulação da mídia democrática é diretamente proporcional à necessidade de mudança no setor. Como mostrou a pesquisa Monitoramento da Propriedade de Mídia, promovida pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras e realizada no Brasil pelo Intervozes, o país possui um sistema de mídia com algo grau de concentração, estruturado em grandes redes articuladas a grupos regionais controladores de diversas mídias, muitas vezes ligados a elites políticas. Entres os países que foram objeto da análise do projeto, o Brasil teve o cenário mais grave de riscos ao pluralismo.

Histórico: relações perigosas

Este quadro foi impulsionado por uma legislação fragmentada, pouco efetiva no combate à concentração de propriedade, frágil no estímulo à diversidade de vozes e ineficiente na garantia de transparência no setor.[2] O contexto é resultado de um domínio dos atores empresariais na definição de leis e na agenda do Executivo.

Alguns exemplos ilustram esse histórico. Em 1962, o Congresso aprovou o Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT), até hoje a lei que rege os serviços de rádio e TV no país. O então presidente João Goulart impôs 52 vetos ao texto. O Congresso derrubou todos eles, no episódio que marcaria a criação da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert). Os grandes grupos comerciais atuaram não somente na legislação, mas na própria definição dos rumos democráticos do país, ao apoiar o golpe civil-militar de 1964. A parceria entre o setor e o regime garantiu políticas importantes à expansão dos próprios grupos, especialmente no caso das Organizações Globo. O apoio se deu desde a construção da rede de micro-ondas que viabilizou a transmissão nacionalizada da emissora ao uso dos estúdios da então TVE do Rio de Janeiro, em 1976 e 1977, após o parque de gravação do grupo no Rio de Janeiro ter pegado fogo.

Na transição da ditadura para a democracia, a Globo atuou diretamente, como na indicação do então ministro das Comunicações, Antônio Carlos Magalhães. Na votação da Constituição, em 1988, o poder da Globo e da radiodifusão comercial novamente se expressou. O capítulo do setor trouxe garantias não existentes em outras áreas, como o tempo de concessão (quinze anos para TV e dez anos para rádio), a renovação quase automática das licenças (à exceção da votação nominal de dois terços do Congresso) e a impossibilidade do Executivo cassar uma outorga (prerrogativa dada apenas ao Judiciário).

No governo Fernando Henrique Cardoso, a primeira alteração constitucional no capítulo das Comunicações foi também obra do segmento empresarial: pressionados pelos radiodifusores, parlamentares permitiram a entrada de 30% de capital estrangeiro nas empresas da área. Em 2002, a chamada “Carta aos Brasileiros” (que marcou o recado da candidatura Lula de diálogo com o mercado) passou por consulta da família Marinho. A política de TV Digital aprovada pela gestão Lula em 2006 saiu à imagem e semelhança do que defendia a Vênus Platinada. Em 2016, a empresa foi ator central na campanha que terminou com a derrubada da então presidenta Dilma Rousseff.

 

Concentração de propriedade

Como resultado desse histórico de legislações e políticas construídas sob pressão ou em articulação com o setor empresarial, o marco normativo brasileiro adquiriu poucos mecanismos de controle da concentração de propriedade. Embora a Constituição proíba, em seu artigo 220, práticas de monopólio e oligopólio, tal diretriz não possui efetividade prática. Entre os poucos limites relativos à propriedade estão o máximo de 30% de capital estrangeiro em empresas jornalísticas (Constituição, Art. 222), a possibilidade de um agente possuir no máximo dez emissoras de TV (Decreto-Lei 236/1967) e a proibição de que um sócio tenha participação em duas empresas prestadoras do mesmo serviço de radiodifusão na mesma localidade (Decreto 52.795/1963).

Um problema central desse modelo é a vinculação dos limites nacionais ao controle direto. Tais restrições não atacam o modelo de concentração brasileiro, organizado em torno de redes nacionais. Apesar do Decreto-Lei 236/1967 falar em uma proibição à formação de cadeias, tal dispositivo não é adotado. Dessa maneira, o Grupo Globo, ao manter cinco emissoras próprias, não viola a lei, mas atinge quase o total dos municípios brasileiros por meio de suas redes de TV e rádio afiliadas. A empresa recentemente lançou campanha publicitária para arrogar seu domínio no mercado nacional, destacando chegar a “100 milhões de uns”.

Além disso, as regras sobre transferência de outorgas e cotas de ações de empresas exploradoras de rádio e TV são extremamente frouxas. Muitos grupos utilizam a prática de comercialização sem oficialização, os chamados “contratos de gaveta”. As já parcas exigências no tocante às transferências foram ainda mais flexibilizadas pelo governo de Michel Temer. O Decreto 9.138/2017 alterou o Decreto 52.795/1963, acabando com o dispositivo que condicionava a permissão direta ou indireta de concessão ou permissão à anuência prévia do governo federal.

Outro ponto problemático da legislação detectado pelo projeto MOM Brasil é a presença de políticos donos de mídia. Embora a Constituição Federal proíba em seu artigo 54 essa participação, historicamente o Executivo (inclusas gestões de partidos diferentes) vem dando interpretação que libera a entrada de políticos no quadro societário das emissoras. Organizações da sociedade civil, como o Intervozes, e o Ministério Público têm judicializado esses casos, com vitórias importantes.[3]

Diferentemente dos políticos, a legislação brasileira não apresenta restrições à propriedade por parte de igrejas e lideranças religiosas. Tal situação vem sendo aproveitada por esses grupos para uma ocupação progressiva da radiodifusão nacional.[4]

 

TV paga

Se por um lado a lei base para a radiodifusão (Lei 4117/1962) está prestes a completar sessenta anos, as normas relativas à TV paga no país passaram por revisão recente. A Lei 12.485/2011 (conhecida como Lei do Serviço de Acesso Condicionado – SeAC) unificou diferentes regras de serviços como cabo, MMDS (TV por micro-ondas) e DTH (TV por satélite), estabelecendo limites entre os distribuidores desses serviço, de um lado, e radiodifusores e programadores (responsáveis por canais), do outro. A Lei marcou um “Tratado de Tordesilhas” do mercado, evidenciando que, na verdade, para as empresas de comunicação não há problema com regulação, a não ser quando esta envolve medidas democratizantes ou ameaça a hegemonia dos grupos empresariais constituídos.

A solução para resolver a disputa entre radiodifusoras (Globo, Record etc.) e programadoras (Globosat etc.), de um lado, e as operadoras de telecomunicações (NET, Claro, Sky etc.), de outro, foi estabelecer barreiras de controle acionário. A partir da Lei do SeAC, as teles ficaram proibidas de deter mais de 30% do capital de emissoras de rádio e TV e programadoras. Já estas passaram a não poder comprar mais de 50% do capital votante de operadoras de serviços de interesse coletivo. A medida é o único mecanismo de combate à chamada “concentração vertical” na legislação brasileira. O termo é empregado quando um mesmo agente econômico domina diversas fases da cadeia de valor (como produção, programação e distribuição).

 

Ausência de fiscalização

A situação de concentração é reforçada pela ausência de fiscalização das parcas exigências previstas na legislação. Em primeiro lugar, autoridades historicamente se abstiveram de regulamentar diretrizes legais, como o princípio constitucional da prática de monopólio e oligopólio. Em segundo lugar, adotaram interpretações equivocadas para evitar impor sanções sobre o setor, como na proibição à participação de políticos em emissoras prevista no Artigo 54 da Constituição. Em terceiro lugar, órgãos de regulação e controle não atuam efetivamente para monitorar se as exigências legais estão sendo respeitadas ou não, fazendo destas letra morta na prática.

O Ministério da Ciência e Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), que absorveu o antigo Ministério das Comunicações, é o órgão regulador principal do setor, responsável pelo monitoramento da legislação própria da área. Um dos casos em que o MCTIC não atua são as restrições à formação de cadeias previstas no Decreto-Lei 236/1967, totalmente ignoradas por ministérios em sucessivas gestões. Outro exemplo são os limites ao número de outorgas. A Rede Bandeirantes explicitamente ultrapassa o máximo permitido em termos nacionais e nunca foi punida por isso. A Rede Record também viola o impedimento de controle de dois serviços iguais na mesma localidade. É o caso das cidades onde a empresa explora a TV Record e a RecordNews (são mais de cem municípios em todo o país).

No plano da concentração, o Brasil também conta com um Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência e com um órgão específico para observar a competição na economia, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). Contudo, a autoridade tem atuação ínfima na área das comunicações. Entre os poucos episódios em análise estiveram uma operação de aquisição de emissoras em Santa Catarina, a atuação conjunta de SBT, Record e RedeTV! no mercado de TV por assinatura por meio da joint venture Simba e a práticas de venda de publicidade conjunta por publicações do Grupo Globo no Rio de Janeiro. À exceção do último caso, os demais foram liberados, com condicionantes.

O CADE também julgou recentemente a compra do grupo de conteúdo estadunidense TimeWarner pela gigante das telecomunicações, também dos EUA, AT&T. Mesmo esta última sendo a controladora de uma das duas principais operadoras de TV paga no Brasil (a Sky) e a primeira estando na liderança do mercado de programação no país, juntamente com a Globosat, o Conselho autorizou a operação, apresentando alguns condicionantes menores. Entidades da sociedade civil, entre elas o Intervozes, se posicionaram contrárias à compra em audiência no Congresso, por aumentarem a concentração e violarem a Lei do SeAC.[5]

 

Transparência

As fragilidades da legislação e da sua implantação se revelam também no tocante à transparência. A lei traz poucas obrigações aos agentes do setor. Para obter uma licença do Estado para explorar uma rádio ou TV, é preciso apresentar os sócios e as cotas de participação, bem como comunicar as alterações. O mesmo vale para vendas de cotas para empresas estrangeiras. No mercado de TV paga, a Lei do SeAC instituiu a obrigação também de envio de informações do quadro societário à Agência Nacional de Cinema.

Entretanto, tais requisitos estão longe de significar um quadro de transparência real. Em primeiro lugar, nem todas as informações de posse das autoridades estão disponíveis ao público ou, quando estão, são pouco acessíveis. Para encontrar dados sobre os donos de emissoras de rádio é TV, é preciso saber que a Agência Nacional de Telecomunicações mantém dois “sistemas interativos” (Siacco e Siscom), nos quais estão os registros em CNPJ das empresas, seus sócios e canais ocupados. Os sistemas são pouco amigáveis até para pesquisadores da área, não sendo preparados para facilitar o acesso a cidadãos não iniciados no tema.

Em segundo lugar, os poucos dados disponibilizados não são atualizados. Em razão das regras frouxas e da ausência de fiscalização, muitas emissoras deixam para enviar informações ao MCTIC apenas no momento da renovação da outorga. A Lei 13.424/2017, resultante de uma medida provisória editada pelo governo Temer, retirou a exigência de anuência prévia do governo para alterações no quadro acionário. Na prática, desobrigou os agentes econômicos de comunicar tais operações uma vez que não há mais necessidade de autorização.

Em repetidos momentos da história, grandes conglomerados de mídia mostraram seu poder de influenciar os rumos da democracia brasileira. Evidenciaram tal capacidade inclusive bloqueando ao longo de mais de cinquenta anos a atualização da mais importante legislação que os rege. Da ditadura militar ao golpe de 2016, a ausência de um arcabouço legal democrático, na contramão do que acontece em países de diversas partes do mundo, inclusive nas nações mais liberais, vem se fazendo sentir para um país que busca se reconciliar com seu jovem e combalido regime democrático.

 

*Jonas Valente é jornalista, integrante do Conselho Diretor do Intervozes e doutorando no Departamento de Sociologia da UnB.

 

 

[1] Camila Moreira, Como os candidatos pretendem acabar com o monopólio da mídia?, Carta Capital, 6 set. 2018.

[2] Media Ownership Monitor (MOM), Repórteres sem Fronteiras e Intervozes, Marco Regulatório do Sistema de Mídia Brasileiro, out. 2017.

[3] Observatório do Direito à Comunicação, Raio X da ilegalidade: políticos donos da mídia no brasil, 1º ago. 2016.

[4] Olívia Bandeira, Igrejas cristãs no topo da audiência, Le Monde Diplomatique Brasil, 16 abr. 2018.

[5] Intervozes, Compra da Time Warner pela AT&T não pode ser acatada no Brasil, Carta Capital, 19 set. 2018.

 

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