Solidão, violência, racismo, homofobia. Internações de adolescentes e crianças por lesões autoprovocadas cresceram 34% – e a taxa de suicídio saltou 116%. Órgãos de Saúde estão em alerta: é preciso reforçar atenção psicológica
Por Thallys Braga, na Piauí
Quando o sol nasce em Minas Gerais, Caio está em seu quarto. Ao cair da noite, também é lá que o rapaz fica, isolado. Ele tem 21 anos e mora em Luz, cidade mineira de pouco mais de 18 mil habitantes. Até os 8 anos, levou a vida tranquila de alguém que cresce numa cidade pequena. Mas então um dos seus tios se matou, e o menino foi se tornando cada vez mais triste. Virou alvo de bullying na escola, perdeu os amigos – “não sobrou ninguém”, ele conta. Aos 10 anos, tentou suicídio e precisou ser internado às pressas. “O médico disse que a minha cabeça estava fazendo aquilo comigo. Foi a primeira vez que ouvi falar em depressão.”
Na adolescência, Caio identificou que era um homem transgênero, e sua sensação de isolamento só cresceu. Com o agravamento do quadro depressivo, foi levado ao hospital algumas vezes depois de se automutilar. Embora os médicos tenham recomendado, ele nunca tratou a depressão por um longo período de tempo. Cresceu encontrando pequenos alívios para a angústia: cachorros, namoradas, bebidas alcóolicas, cortes nos braços. Conseguiu terminar o ensino médio, mas não teve motivação para prestar vestibular ou trabalhar. “Uma vez comecei um curso técnico de auxiliar de veterinário, mas abandonei depois de três meses”, ele lembra. “Desisto fácil das coisas de que gosto. A depressão faz isso comigo. Quando começo a ir bem em alguma coisa, desisto.”
Caio representa uma história, mas não a única, de um quadro de adoecimento mental de crianças e jovens brasileiros, com casos repetidos de depressão, ansiedade e síndrome do pânico. Em 2021, as internações de pessoas de crianças e jovens de 5 a 19 anos na rede pública de saúde por lesões autoprovocadas cresceram 10% em relação a 2020, mostram dados do SUS. No grupo de 10 a 14 anos, o aumento foi de 34%. As internações tinham caído no primeiro ano de isolamento social, mas voltaram a crescer, numa tendência que vem desde 2010. Em um Boletim Epidemiológico divulgado setembro passado, o Ministério da Saúde apontava que as taxas de suicídio saltaram 116% entre crianças e adolescentes de 5 a 14 anos no intervalo de 2010 a 2019; nos jovens de 15 a 19 anos, o aumento foi de 81%. Nas demais faixas etárias, a taxa não cresceu mais que 30%. Os dados levaram o governo federal a classificar o suicídio como “um problema de saúde pública crescente no Brasil, com destaque aos grupos etários mais jovens”.
Em 2020, o suicídio era a quarta causa de mortes por causas externas entre crianças e adolescentes, ficando atrás apenas de agressões, acidentes no trânsito e lesões por outros tipos de incidentes. Quando se trata de autodestruição, os números são sempre subnotificados, segundo a Organização Mundial da Saúde. Para cada suicídio consumado, há muito mais pessoas que o tentam. Por isso, quanto mais cedo as crianças e adolescentes em situação de sofrimento mental receberem tratamento, maior a probabilidade de se recuperarem. Mas tudo indica que eles continuam sem receber cuidados. Um estudo realizado por pesquisadores do Hospital das Clínicas em 2019 identificou que 81% das crianças de 6 a 12 anos moradoras de Porto Alegre e São Paulo que tinham transtornos mentais não tiveram tratamento terapêutico.
Guilherme Polanczyk, professor do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP e um dos autores da pesquisa, acredita que a pandemia tornou ainda pior o acesso dos jovens doentes ao tratamento. “Os dados oficiais não refletem o crescimento da busca por ajuda que observamos nos consultórios. Desde que a pandemia começou, a fila de espera por atendimento dura meses. Em vinte anos de psiquiatria, nunca vi nada parecido.” Polanczyk se refere a consultórios privados, onde as pessoas podem pagar por consultas. “Você consegue imaginar como está a situação da espera por ajuda na rede pública?”, ele pergunta. Na rede pública, é possível obter atendimento psicológico no Sistema Único de Saúde, que encaminha para os Centros de Atenção Psicossocial, ou procurar diretamente uma unidade do Caps.
Entre junho e novembro de 2020, Polanczyk e outros pesquisadores da USP e do Hospital das Clínicas entrevistaram remotamente 5.795 crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos de todas as regiões do país para medir os efeitos da pandemia sobre a saúde mental deles. No segundo semestre do primeiro ano de isolamento, 36% apresentaram sintomas de depressão e ansiedade. Como as escolas estavam fechadas e seria perigoso realizar as entrevistas presencialmente, só participaram aqueles com conexão à internet. “A gente sabe que os dados da pesquisa não refletem a realidade das crianças e dos adolescentes mais pobres”, Polanczyk diz. Ainda assim, os resultados indicaram que a insegurança alimentar esteve associada a maiores níveis de ansiedade e a sintomas depressivos. O fator de maior impacto sobre a saúde mental das crianças e dos adolescentes na pandemia foi o sentimento de solidão, de acordo com o estudo.
O Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde não aponta causas exatas do sofrimento mental dos jovens brasileiros, mas dá a entender que certas particularidades ajudariam a explicar o aumento das taxas de suicídio juvenil. Com base em estudos americanos, menciona que a geração Z, formada por nascidos a partir de 1995, está mais propensa a ter depressão por ser menos resiliente e não saber lidar com frustrações. No entanto, há uma escassez de estudos sobre as particularidades comportamentais dessa geração no Brasil e investigações sobre o que está por trás do maior crescimento das taxas de suicídio nesse grupo etário em comparação aos demais.
O ministério sugere que os programas de apoio à saúde mental sejam reforçados e que os profissionais das unidades de atenção psicossocial recebam maior capacitação para lidar com crianças, adolescentes e jovens em situação de vulnerabilidade emocional. No ano passado, pela primeira vez desde 2010, o governo federal não abriu novas unidades dos Centros de Atenção Psicossocial. A última vez que o governo divulgou informações transparentes sobre os investimentos realizados na área foi em 2015. Procurado, o Ministério da Saúde* disse em nota que acompanha com atenção os números de suicídio na adolescência, e que realiza ações para reforçar o cuidado ao grupo etário na rede de atenção psicossocial do SUS. Em nota, explicou que lançou recentemente os projetos Linha Vida 196 e Projeto Teleconsulta para fortalecer os cuidados às pessoas com ansiedade e depressão no momento pós-epidemia.
Mariana Bteshe, professora de Saúde Mental e Psicologia Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Uerj, afirma que o boletim do Ministério da Saúde é ingênuo porque trata o suicídio como uma questão meramente clínica. Muitas pessoas que não apresentam sinais de depressão ou ansiedade tentam o suicídio, e as razões têm origem em fatores sociais. “Os jovens têm levado cada vez mais questões ligadas a violência, homofobia e racismo para a clínica”, diz Bteshe. “São histórias em que o comportamento violento é naturalizado na família, nas escolas, na rua. Se tudo isso pode atuar como fator de risco para a saúde mental de uma pessoa, por que não é considerado no discurso oficial sobre o suicídio?”
Para Bteshe, além da falta de estudos abrangentes sobre o tema, existe uma dificuldade em diferenciar confusões corriqueiras da adolescência do sofrimento excessivo. E só quem pode responder qual é a diferença entre os dois extremos são as crianças e os jovens, com a ajuda de familiares e de profissionais qualificados para escutar as suas inquietações. Quando se trata da geração Z, Bteshe observa que há mais liberdade e disposição para falar de vulnerabilidades emocionais. “Houve uma quebra de tabu que permitiu a essa geração conversar mais sobre suicídio, depressão, ansiedade. Eles tiveram acesso a um debate público na internet que é fruto dos esforços das pessoas que se dedicam a pesquisar o tema no Brasil.”
Por outro lado, mais conversas sobre o tema não representam, necessariamente, mais procura por ajuda. E embora as redes sociais tenham ampliado o acesso a informações sobre transtornos mentais, ela também é uma ferramenta poderosa para banalizar a discussão. Basta buscar por “depressão” no TikTok para encontrar uma coleção de vídeos que oferecem diagnósticos rápidos e enganosos para uma doença complexa, que pode se manifestar de maneiras particulares em cada pessoa. Para Cristiane Geraldo Folino, psicanalista e membro do Departamento de Saúde Mental da Sociedade de Pediatria de São Paulo, a internet pode ter tornado ainda mais difícil lidar com as angústias do crescimento. “Na adolescência, as pessoas desenvolvem profundas angústias. Há uma grande dor em ter que abrir mão da criança que se era para encarar o mundo de desafios que se abre. O sofrimento nessa fase é inerente ao ser humano”, diz Folino.
De acordo com a psicanalista, estudos demonstram que as redes sociais são nocivas aos mais jovens porque suscitam comparações excessivas, distúrbios de imagem e pressão por produtividade. Por outro lado, crescer na frente das telas também mudou a maneira como eles lidam com frustrações. “É muito fácil sentir prazer com as ferramentas das redes sociais, ou performar felicidade para os outros. Na vida real, é preciso se esforçar um pouco mais para sentir satisfação com a vida”, diz Folino. “No meio disso tudo, acabamos nos tornando pessoas avessas ao sofrimento.”
A população LGBTQIA+ está entre os grupos que a Organização Mundial da Saúde classifica como de alto risco de suicídio, ao lado de refugiados, migrantes e indígenas. Um levantamento feito pela Universidade de Brasília e pelo Ministério da Saúde com dados de 2012 a 2016 observou que as mortes por suicídio eram desproporcionalmente maiores entre adolescentes e jovens negros. A literatura científica vem demonstrando que o racismo aumenta os riscos de depressão. Crianças e jovens negros, mais propensos a serem expostos à violência sistemática, são justamente os que menos acessam os serviços de saúde mental. O estudo conduzido pelo Hospital das Clínicas em 2019 apontou que 87% das crianças pardas com transtornos mentais não recebiam tratamento, enquanto 77% das brancas estavam na mesma situação.
Ao longo da vida, Caio teve duas psicólogas, mas nunca contou a elas que é um homem trans. Sua última sessão de terapia aconteceu em 2018. À época, ele tinha 17 anos e já era esclarecido quanto à sua identidade de gênero, mas não falou sobre o assunto porque tinha receio de que as terapeutas compartilhassem a informação com os seus pais. Hoje, só a mãe dele sabe da transexualidade, mas o chama pelo nome feminino de batismo, assim como o restante da família. Ele ainda não iniciou a transição de gênero. Como as psicólogas não sabiam de sua identificação, também chamavam Caio pelo nome antigo.
Na última vez que em que o mineiro foi internado por tentar suicídio, os médicos foram incisivos: ele precisava de um psiquiatra. Sem forças para argumentar, Caio aceitou a consulta. O médico conversou com ele por alguns minutos, perguntou sobre o seu histórico depressivo e receitou fluoxetina, antidepressivo genérico do Prozac. O jovem tomou a medicação por alguns meses, mas parou. “O remédio controlava as crises, mas me deixava dopado”, ele diz. “Quando eu parava de tomar, ficava consciente, mas então as crises voltavam. Nunca encontrei um equilíbrio.” O psiquiatra também sugeriu que ele voltasse a fazer terapia. Caio aceitou e se inscreveu na fila de espera por psicólogo no posto de saúde mais próximo à sua casa. A chamada para consulta só chegou seis meses depois. Pelo telefone, uma técnica de enfermagem disse que ele poderia se consultar com o terapeuta duas vezes por mês. Caio disse que já estava melhor e não tinha mais interesse no atendimento, então desligou o telefone. O posto de saúde não voltou a ligar.
Há pouco tempo, o rapaz descobriu que, para além das discussões superficiais sobre saúde mental nas redes, existem grupos de apoio no Facebook e no WhatsApp em que jovens desabafam. Esse tem sido o seu ponto de escape. “Há dias em que me sinto sozinho como se estivesse numa ilha”, ele diz. “Nos grupos de apoio, parece que as pessoas entendem o que sinto. Quando publico um desabafo e alguém curte, é tipo receber um abraço.” De vez em quando, Caio pensa em desistir da vida, mas lembra que precisa dar apoio para os colegas que fez no grupo de Facebook. Lá, ninguém fala sozinho. Todas as publicações recebem ao menos um comentário. Certa vez, uma jovem paraibana publicou uma foto do personagem animado Bart Simpson triste no grupo. Na legenda, escreveu: “Minha cabeça está pesada, parece que tem alguma coisa enroscada na minha garganta. Parece que estou fora de mim. Alguém já sentiu isso? Minha depressão está me matando.” O post recebeu doze comentários; um era de Caio. Ele comentou: “😞💔”.