Na década de 1970, a doença ganhava escala epidêmica. Livro recém-lançado examina os conceitos médicos e sua face biopolítica, e a relação perversa entre o depressivo e o perdedor, numa sociedade que culpa somente o indivíduo por seu sucesso ou fracasso
Prefácio
O livro de Elton Corbanezi é, no meu entender, um estudo precioso para quem quiser conhecer um fenômeno contemporâneo de grande relevância, ao mesmo tempo social, política e científica – o caráter epidêmico da depressão e suas implicações na gestão da assim chamada saúde mental das populações na era do capitalismo neoliberal globalizado.
À primeira vista, o tema parece árduo, espinhoso. Entretanto, graças ao talento do pesquisador e à sua escrita elegante e fluida, o leitor não encontrará dificuldade para adentrar aos poucos a instigante problemática. Porque Elton Corbanezi se dá o tempo de expor, com precisão, os conceitos que vão se desdobrando uns nos outros, e uns contra os outros, desde a loucura renascentista até o binômio saúde mental-depressão. Um trabalho propriamente de hermeneuta, daquele que interpreta os textos e o sentido das palavras, para deles extrair e enquadrar esse mal tão difuso, tão variado, que acomete tanta gente, a ponto de alarmar os assim chamados responsáveis pela saúde pública e os agentes econômicos.
Todo mundo sabe de alguém que teve ou tem depressão, se é que já não passou por essa experiência. No entanto, poucos são os que conhecem todo o leque de suas diferentes facetas, de suas intensidades diversas, de suas incidências no mundo do indivíduo e da sociedade. E, menos ainda, os que tiveram a oportunidade de rastrear o “problema”, o modo como a depressão se construiu na teoria e na prática social. Esse é o percurso traçado pelo autor, essa é a qualidade maior de sua investigação.
Apoiando-se numa bibliografia de primeira linha, onde despontam Michel Foucault, Nietzsche, Gilles Deleuze, Georges Canguilhem, Robert Castel, os antipsiquiatras ingleses, Franco Basaglia, Alain Ehrenberg, Erving Goffman, Thomas Szasz e tantos outros (incluindo os estudos dos autores brasileiros – de Machado de Assis a Joel Birman e Jurandir Costa Freire, passando por Vladimir Safatle…), o pesquisador traça a cartografia que vai da loucura à desrazão clássica, desta à doença mental e, finalmente, da doença à saúde mental, mostrando como esta tem como correlato o avanço impressionante da depressão e de sua administração fora da instituição asilar, em campo aberto, por meio do recurso cada vez mais enfático dos tratamentos bioquímicos.
Se Elton Corbanezi tivesse se limitado a tal mapeamento, já teria prestado um grande serviço, ao limpar a área e mostrar as transformações que ocorreram no campo da psiquiatria enquanto ciência definidora de quem é são e de quem é insano, de quem sofre ou não de transtornos mentais. Mas o mérito da pesquisa vai além, na medida em que o autor mantém permanentemente um olho na evolução da teoria e da prática médicas e outro no modo como estas se articulam com a gestão dos indivíduos e das populações pelo poder. Assim, a análise do passado esclarece como a psiquiatria se constituiu como uma tecnologia do poder sobre o anormal antes de tornar-se um dos principais vetores da própria normalização na sociedade contemporânea. Vale dizer: de produção em larga escala de sujeitos sujeitados.
E é aí que o presente trabalho suscita um interesse agudo, ao mostrar a relação intrínseca e perversa que se estabelece entre o depressivo e o perdedor numa sociedade neoliberal que faz a competição penetrar em todos os poros da vida individual e da vida social. Com efeito, resgatando as análises de Michel Foucault sobre a versão neoliberal do homo oeconomicus e de Osvaldo López Ruiz sobre o indivíduo reduzido a “capital humano” e “empreendedor de si mesmo”, o autor nos faz perceber que o imperativo da saúde mental generalizada, preconizado pela American Psychiatric Association e pelos relatórios da Organização Mundial da Saúde, não é senão a outra face da moeda em que se inscreve a depressão epidêmica.
Introdução [Elton Corbanezi]
O objetivo do livro é mostrar a função política e econômica que se depreende da articulação de duas noções científicas contemporâneas: saúde mental e depressão. De maneira mais específica, a partir de uma perspectiva histórica e conceitual, analisamos criticamente a proveniência e a consolidação do discurso da saúde mental na segunda metade do século XX, apresentando, em seguida, elementos para compreender de forma sociológica a ideia corrente de epidemia depressiva, divulgada no imaginário social das sociedades capitalistas ocidentais desde os anos 1970 e sustentada oficialmente em nossos dias pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Sabe-se que Foucault pensou o presente a partir da história. Em Vigiar e punir, o filósofo denominou tal tarefa como “história do presente” (Foucault, 1987, p.29). Se, por um lado, nossa intenção consiste em apreender o conceito contemporâneo de saúde mental a partir de uma perspectiva histórica, por outro, uma noção diversa do autor de História da loucura nos estimula a refletir sobre a depressão enquanto problema sociológico atual. Por não sabermos se a proporção epidêmica de depressão divulgada atualmente corresponde ou não ao término – ou ao início – de um tempo histórico, a pergunta sobre o que estamos fazendo de nós mesmos hoje se torna premente. “Ontologia do presente” é a maneira como Foucault (1994, v.4, p.687-8) conceituou essa arriscada e necessária experiência de apreensão do contemporâneo, a qual fora inaugurada por Kant por meio de suas perguntas a propósito do Esclarecimento (Aufklärung) e da Revolução Francesa. Movidos por esse desafio, perguntamos: o que a depressão, enquanto problema destacado pelo discurso positivo da saúde mental, pode dizer a respeito de nós e do que estamos fazendo de nós mesmos hoje?
É verdade que os sintomas que atualmente fazem da depressão uma doença nos remetem a uma história de longa duração. Na apresentação ao “Problema XXX, 1” – texto em que Aristóteles explora as relações entre a inconstância e a excepcionalidade características da genialidade do melancólico –, o filólogo e historiador da medicina Jackie Pigeaud sustenta que a tradição ocidental conferiu a Hipócrates o estabelecimento da melancolia como doença. Segundo Pigeaud, no 23º aforismo do livro VI dos Aforismos, atribuídos a Hipócrates, encontra-se o seguinte pensamento: “Se tristeza (distimia) e medo duram muito, um tal estado é melancólico” (Aristóteles, 1998, p.55). Apesar da origem longínqua, bem como das diferentes concepções de melancolia que se estabeleceram ao longo da história da medicina ocidental, a depressão, enquanto possível atualização desse estado de espírito, pode ser considerada um fenômeno social relativamente novo: sua elevação expressiva nos índices epidemiológicos mundiais ocorre, sobretudo, a partir de 1970, quando passa então a ser divulgada como a “doença da moda”, o “mal do século” ou ainda, conforme a célebre formulação de Freud (2010), o atual “mal-estar da civilização”. É o que afirma o sociólogo francês Alain Ehrenberg na entrevista “La dépression. Naissance d’une maladie”:
Na primeira metade do século XX, a depressão é apenas uma síndrome reconhecível na maior parte das doenças mentais (psicoses e neuroses), e não é objeto de nenhuma atenção particular em nossas sociedades. Tudo se transforma nos anos 1970. A epidemiologia psiquiátrica mostra então que ela é a perturbação mental mais corrente no mundo, enquanto os psicanalistas percebem um nítido crescimento de deprimidos entre seus clientes. É o seu êxito médico. Por outro lado, a depressão é propagada pela mídia como uma “doença da moda”, ou mesmo o “mal do século”. Ou seja, a depressão é menos nova do que sua amplitude. Ela acabou por designar a maior parte dos males psicológicos ou comportamentais que cada um é suscetível de encontrar no decurso de sua vida. Assim, a depressão se torna um êxito sociológico. (Ehrenberg, 2004a, p.34)
Como se vê, desde as últimas três décadas do século XX, esse transtorno psiquiátrico se tornou um problema médico e também sociológico de primeira ordem. Segundo o Relatório sobre a saúde no mundo 2001 – Saúde mental: Nova concepção, nova esperança – documento da OMS destinado exclusivamente aos problemas de saúde mental –, cerca de 450 milhões de pessoas no planeta sofriam, por volta de 2001, de transtornos mentais ou neurobiológicos. No interior desse quadro, a depressão grave já aparece no relatório como “a principal causa de incapacitação em todo o mundo e situa-se em quarto lugar entre as dez principais causas da carga patológica mundial” (OMS, 2001, p.14). Diante de tal cenário, a publicação destaca o relevante e conhecido prognóstico de que a depressão viria a se tornar, até 2020, um problema mundial de ordem epidêmica, subindo para a segunda posição no ranking das principais causas da carga patológica mundial, que é avaliada conforme os anos de vida ajustados por incapacitação (AVAI); sendo assim, a depressão estaria atrás apenas da doença isquêmica cardíaca (ibidem, p.57-8). Em publicação de 2008, voltada à carga mundial de doenças, a OMS projeta, contudo, que a depressão tornar-se-á a primeira no ranking em 2030, ultrapassando doenças cardíacas, consequências de acidentes de trânsito e doenças cerebrovasculares (idem, 2008, p.51). Considerando tal panorama, formulamos nossa questão: em relação a quê e de que modo a depressão se apresenta em nossos dias como um problema de ordem epidêmica?
Toda uma tradição do pensamento filosófico ocidental – notadamente Nietzsche, Canguilhem, Simondon, Foucault, Deleuze e Guattari – já evidenciou o quanto o patológico é um problema passível de reflexão apenas segundo uma multiplicidade relacional, mais especificamente um problema que se estabelece a partir da relação com a normatividade, seja da linguagem, da fisiologia, do indivíduo, do meio ou do tecido social. A radicalidade desse ponto de vista se faz notar, por exemplo, na filosofia da normatividade biológica do organismo concebida por Canguilhem (2002), conforme a qual não existe fato biológico – tampouco individual ou social, portanto – que seja normal ou patológico em si. Inspirado nessa tradição de pensamento, é de maneira relacional que procuramos examinar (i) a constituição da saúde mental (enquanto conceito e campo de atividade) e (ii) a ideia corrente de epidemia depressiva. Considerando seriamente a proposição de que a depressão não pode ser pensada como um dado natural, a-histórico ou em si, mas apenas em relação, percebe-se que ela pode vir a ser uma doença de altíssima incidência na medida em que se constitui como um problema a um determinado modo de vida e a todas as exigências que dele sucedem, tais como felicidade, gozo, energia, criatividade, velocidade, projeção, motivação, comunicação, mobilidade e assim por diante. Enquanto o avesso de determinados ideais normativos do capitalismo contemporâneo, a experiência depressiva parece se apresentar como uma manifestação significativa de obstáculo e de recusa ao imperativo biopolítico que caracteriza o modo operacional da saúde mental.
Daí então a necessidade de cartografar e de compreender a emergência e a consolidação do conceito de “saúde mental” na segunda metade do século XX. Resultado de um amplo processo de desinstitucionalização da doença mental em diferentes países ocidentais, assim como da institucionalização dos direitos humanos, do desenvolvimento da psicofarmacologia e da incorporação do elemento mental no conceito de saúde da OMS, o discurso da saúde mental estabelece objetivos centrais como substituir o modelo hospitalocêntrico, humanizar e priorizar o tratamento em atenção primária, prevenir e desestigmatizar os transtornos mentais e promover a saúde mental.
Porém, diferentemente de conceitos como “doença mental” e “anormalidade”, que se referem, respectivamente, à patologia propriamente dita e à sua virtualidade, o conceito de “saúde mental” abrange desde a psicose e os diversos sofrimentos psíquicos até a produção do bem-estar. Veremos, assim, que a extensão do conceito de saúde mental proporciona e fundamenta uma significativa intervenção psiquiátrica no tecido social, tornando possível estimular e potencializar o desempenho e a eficácia de condutas em uma sociedade que “descoletiviza” cada vez mais o indivíduo e lhe atribui a responsabilidade por seu sucesso ou fracasso social.
Desde a década de 1970, aproximadamente, assistimos à emergência e à intensificação de acontecimentos que ainda nos são contemporâneos e que solicitam uma abordagem relacional: é ao lado da “neoliberalização” das sociedades ocidentais que o discurso da saúde mental começa a tomar consistência e a sugerir um sentido diverso do pretendido inicialmente durante o estado de bem-estar social (welfare state), ao mesmo tempo que se modifica o paradigma a partir do qual os transtornos mentais são concebidos e se banaliza a depressão mediante a divulgação de sua epidemia.
Ao problematizar noções científicas em termos políticos, queremos dizer que a configuração e a definição dos conceitos de saúde mental e de depressão podem se articular de maneira a modular existências e a governar condutas. Como afirmou Deleuze (1992, p.203) a respeito de Espinosa, o conceito, qualquer que seja ele, não se move apenas em si, mas também nas coisas e em nós mesmos. Ou seja, ao contrário de isolado e inocente, o conceito sempre implica a vida. É nesse sentido que apresentamos a proposição de que os conceitos de saúde mental e de depressão podem ter uma função política sobre a existência no capitalismo contemporâneo.
* * *
Antes de problematizar diretamente a noção de saúde mental, o primeiro capítulo pretende reconstituir historicamente a emergência do conceito de doença mental, que condicionou o nascimento da psiquiatria. Em concordância com a tese de Robert Castel (1978, p.272) sobre a função modelar que o alienismo francês exerceu nos diferentes países ocidentais, a exposição a respeito da constituição da psiquiatria se reporta ao protótipo francês a partir, sobretudo, das pesquisas de Foucault e do próprio Castel.
Contudo, o objetivo do capítulo não é explorar minuciosamente a história do nascimento e da constituição da psiquiatria, como as pesquisas mencionadas já fizeram de maneira notável, mas sim destacar e analisar os diferentes conceitos relativos à desordem psíquica e comportamental. Desse modo, percorremos uma história cujo início antecede a própria constituição da psiquiatria, com a finalidade de sublinhar a transitoriedade dos conceitos de “loucura” e “desrazão” até a construção da “doença mental”. Procedendo assim, trata-se não apenas de mostrar a formação do paradigma de internação vigente até a segunda metade do século XX – dado que é mediante a relativa desconstrução de tal paradigma que decorre a emergência do campo denominado saúde mental –, como também de evidenciar, a partir de uma perspectiva genealógica, o quanto as transformações conceituais correspondem a verdadeiras modificações de problemas. Nesse sentido, ressaltamos como os conceitos de loucura, de desrazão e de doença mental operam deslocamentos significativos, tal como o fazem posteriormente os conceitos de anormalidade e de saúde mental.
É com o mesmo procedimento que examinamos, no segundo capítulo, a proveniência, a emergência e a consolidação do conceito contemporâneo de saúde mental. Para tanto, analisamos as implicações do conceito de anormal em psiquiatria, bem como as críticas e os movimentos contestatórios e antipsiquiátricos direcionados ao paradigma tradicional da psiquiatria baseado na internação.
Em seguida, recorremos tanto a pesquisas sociológicas, filosóficas e médicas sobre o conceito de saúde mental quanto a documentos da OMS que o definem e o divulgam oficial e mundialmente, de modo a compreender sua função política latente e atual.
Por último, o terceiro capítulo examina a ideia de epidemia depressiva. Parte-se de um testemunho literário para chamar a atenção para a seriedade e a gravidade do sofrimento depressivo severo. Em seguida, para mostrar que o sofrimento não é sempre de tamanha intensidade, investigamos a evolução das concepções dos transtornos depressivos nos sucessivos Manuais diagnósticos e estatísticos de transtornos mentais (DSM), sobretudo a partir da terceira edição, que modificou o paradigma da racionalidade psiquiátrica.
Mais detidamente, analisamos as diversas categorias diagnósticas de depressão nas duas últimas edições do manual da American Psychiatric Association (Associação Americana de Psiquiatria – APA, na sigla em inglês)): o DSM-IV-TR [2000] e o DSM-5 [2013], que são, ao lado da Classificação Internacional de Doenças (CID) da OMS, os principais sistemas classificatórios de psiquiatria no mundo. Por fim, apresentamos a teoria do capital humano enquanto característica essencial do éthos contemporâneo das sociedades capitalistas ocidentais, de modo a identificar, então, como a evolução científica da nosologia psiquiátrica da depressão pode se relacionar com as demandas do capitalismo atual.
Veremos, assim, que a ideia de epidemia depressiva pode ter como condição de possibilidade o contexto contemporâneo da biopolítica da saúde mental. Nesse sentido, a história da depressão enquanto categoria clínica nos interessa menos do que sua relação com o discurso positivo da saúde mental – daí examinar as concepções psiquiátricas do transtorno a partir da segunda metade do século XX. Descrevendo e analisando a sistemática ramificação e flexibilização dos transtornos depressivos nos manuais psiquiátricos, a hipótese central do livro é que o estabelecimento da depressão como patologia, sobretudo em sua forma mais tênue, corresponde à lógica de desempenho que fundamenta uma forma de governo voltada ao desenvolvimento, à otimização e à potencialização das capacidades dos indivíduos.
Pretendemos sustentar, portanto, que a ideia de epidemia de depressão adquire sentido quando relacionada a um discurso exterior que estimula permanentemente o indivíduo a produzir bem-estar, a otimizar suas capacidades e a se autorrealizar em todas as dimensões da sociabilidade. Ou seja, a depressão, segundo a concepção psiquiátrica atual, parece se constituir como um problema relevante para a cultura ocidental, especialmente em relação a uma forma de governar a vida que constitui o programa positivo da saúde mental.
Como se vê, argumentamos que há uma articulação fundamental entre a ideia de epidemia da depressão e a emergência da saúde mental, que resulta, diferentemente do que pretendia a crítica ao dispositivo psiquiátrico clássico, na ampliação da intervenção médica com o objetivo tácito de incitar e promover as potências dos indivíduos em todas as esferas da vida social (relações interpessoais, família e trabalho). Assim, no contexto em que se pretende produzir uma determinada saúde a todo custo, a proporção supostamente epidêmica de depressão pode evidenciar – e colocar em questão – o aspecto político de um programa que circula em nome da saúde.
Ao estabelecer o contexto neoliberal da biopolítica da saúde mental como condição de possibilidade para a epidemia depressiva, não se trata de realizar um mero reducionismo sociológico, como se a concepção de depressão se constituísse exclusivamente a partir de normas sociais contemporâneas. Se, por um lado, reduzir tal fenômeno médico à dimensão biológica consiste em naturalizar algo que é também social, cultural e historicamente produzido, por outro, limitá-lo igualmente à explicação sociológica implica negligenciar a depressão como acontecimento que solicita a investigação de diversos saberes.
Como adverte Pignarre (2003, p.125-6), trata-se menos de subordinação do que de mobilização dos saberes, já que a depressão envolve irrecusável e simultaneamente elementos biológicos, psicológicos e sociais. Apesar do aspecto incontestável dessa observação, cabe à sociologia – entre diversos caminhos possíveis e junto a outras ciências humanas – pesquisar em documentos que orientam a prática médica e social a função político-econômica de discursos institucionais e de classificações científicas. Em tempo, é preciso advertir que o leitor não encontrará aqui, portanto, uma investigação sobre o funcionamento fisiológico ou psíquico da depressão, tampouco a propósito das práticas que incidem sobre ela ou a respeito dos interesses financeiros da indústria farmacêutica.
A nosso ver, problematizar a “saúde mental” e a “depressão” a partir de uma perspectiva histórica e conceitual implica subtrair-lhes a aura de verdade científica desinteressada e desnaturalizá-las, o que constitui tarefa fundamental da sociologia. Daí por que se ocupar da questão: é que o discurso da saúde mental e o estabelecimento da depressão como doença podem operar como sintoma social, fazendo ver o que a sociedade projeta em termos de saúde e o que ela persegue enquanto patológico.
Laymert Garcia dos Santos é professor aposentado do departamento de sociologia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Politizar as novas tecnologias (Editora 34).
Elton Corbanezi é professor de sociologia da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
Referência
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