20 de novembro – Dia da Consciência Negra

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Até bem pouco tempo atrás, a autoimagem do Brasil era a de uma “democracia racial”. Um país que se orgulhava de não ter leis segregacionistas, de ter ídolos negros, de ter convívio social aberto a todos. Será que essa autoimagem não ignora um racismo velado no dia-a-dia? Será que leva em conta os inúmeros casos de racismo declarado em vários ambientes sociais? O que a percepção de que não somos um país racista tem a ver com a experiência do autoritarismo no regime militar?

Breve histórico da luta antirracista

Vale lembrar que a luta dos negros brasileiros contra a discriminação racial, por direitos políticos e por justiça social não se iniciou durante o regime militar. Trata-se de uma luta que remonta aos tempos da escravidão e que conheceu múltiplas formas de ação e consciência. Fugas individuais e coletivas, organização de quilombos, revoltas, irmandades religiosas, ex-escravos que se tornaram defensores jurídicos de escravos e libertos ou militantes da causa abolicionista.

Quando veio a República, no final do século XIX, surgiram novas e sutis formas de construção de um apartheid racial pelas elites políticas e econômicas, que à época sonhavam em “branquear” a população brasileira. Por exemplo, a proibição do voto de pessoas não alfabetizadas e a promulgação de leis contra a “vadiagem” foram particularmente determinantes para confirmar a exclusão dos negros, muitos deles ex-escravos ou filhos de escravos que nunca haviam tido condições de frequentar a escola ou de conseguir empregos dignos depois da abolição. De acordo com as “leis de vadiagem”, quem não tinha trabalho ou moradia fixa poderia ser preso. Em grande parte, essa lei tentava manter os ex-escravos nas fazendas, sob o domínio de seus ex-senhores.

Ao longo dos anos 1930, com os novos arranjos políticos da Era Vargas, a mestiçagem passou a ser valorizada como signo de brasilidade, ao mesmo tempo em que surgiram muitas organizações políticas e culturais de luta contra a discriminação racial, como a Frente Negra e o Teatro Experimental do Negro, fundado por Abdias do Nascimento, grande militante brasileiro nessa área.

Após 1945, inaugurou-se um dos períodos mais ricos da vida política brasileira, e a luta dos negros brasileiros contra a discriminação se mesclou à luta por justiça social e ampliação da democracia. Um exemplo disso é a promulgação da Lei Afonso Arinos, em 1951, que proibia qualquer ato de discriminação racial no Brasil.

Entretanto, como o racismo brasileiro sempre evitou se transformar em segregação legal, como nos Estados Unidos ou na África do Sul, a discriminação por aqui sempre foi mais difícil de ser captada e criminalizada. O golpe militar estancou esse processo, mudando os rumos da vida política e social do Brasil.

Paradoxalmente, entretanto, a “consciência negra”, como se dizia, se adensou nos anos 1960 e 1970, influenciada, inclusive, pela luta dos povos africanos contra as suas metrópoles, pela luta contra o apartheid racial na África do Sul e pela luta dos negros estadunidenses por direitos civis. “Black is beatiful” era o lema internacional da época, algo como “Negro é lindo”, em português. No final dos anos 1960, a partir das novas posturas do movimento negro dos Estados Unidos, o black power (“poder negro”) se manifestava nos cabelos, nas roupas, nos gestos, manifestando o orgulho pela cor de pele diferente da sociedade WASP (White, Anglo-Saxon, and Protestant – branca, anglo-saxã e protestante), que formava a elite norte-americana.

Luta cultural e política

A luta dos negros brasileiros durante a ditadura pode ser pensada em dois campos que, por sua vez, se conectavam: o cultural e o político.

No campo cultural, a valorização do negro dentro da cultura brasileira começou a desenvolver um espaço próprio. As velhas teorias da mestiçagem e a ideologia da “democracia racial” começaram a ser duramente criticadas por intelectuais, artistas e agitadores culturais. No mundo acadêmico, sociólogos como Florestan Fernandes desenvolveram críticas sofisticadas e aprofundadas à ideia de “democracia racial”, demonstrando como os negros foram integrados à sociedade industrial e urbana, com a manutenção da uma situação de dupla exclusão, social e racial.

No samba, por exemplo, incrementou-se um processo de valorização das raízes negras e africanas, ainda que o gênero fosse símbolo de brasilidade. No final dos anos 1960 e início dos anos 1970, na explosão da “black music”, artistas como Tim Maia e Toni Tornado colocaram em pauta explicitamente a questão da luta contra a discriminação.

No ano de 1974, na cidade de Salvador, o bloco Ilê Aiyê surgiu com a proposta de celebrar o carnaval sem esquecer o protesto contra o racismo, cantando “É o mundo negro que viemos mostrar a você”. Nas periferias, começou a surgir uma nova consciência entre jovens e adolescentes cujo foco era a valorização da “identidade racial” e a percepção do preconceito explícito ou disfarçado que marcava a sociedade brasileira. Apesar disso, o “racismo cordial” à brasileira ainda era frequente, e a população negra era a mais marginalizada.

No campo político, a novidade dos anos 1970 foi o ressurgimento de um movimento negro altamente politizado e influenciado por ideologias marxistas. Embora os partidos de esquerda sempre tivessem priorizado e luta de classes e não a questão racial, que julgavam derivada da primeira, muitos partidos e grupos marxistas – como o PCB e o PC do B – já tinham colocado a “questão racial” em seus programas, manifestos, resoluções.

Artistas brasileiros influenciados pelo comunismo também já tinham criado várias obras nas quais essa questão aparecia, entre filmes, músicas e livros. Mas foi em 1978, com a fundação do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNU), incentivado inicialmente por militantes trotskistas da Convergência Socialista, que a questão racial e o discurso marxista foram mais intimamente conectados, a partir de um ativismo no qual os militantes negros de formação universitária eram os principais protagonistas.

O MNU foi fundado num ato público que reuniu 2 mil pessoas, no dia 7 de julho daquele ano, nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo. O ato era uma resposta à discriminação sofrida por quatro jovens atletas negros num clube esportivo de São Paulo, além de outros eventos de violência policial contra os negros.

Vale lembrar que a ditadura militar brasileira retomou a ideologia da “democracia racial” como um de seus eixos de integração nacional autoritária. Para a ditadura e seus ideólogos, a racialização das desigualdades no Brasil e as pautas do movimento negro eram antipatrióticas, imitação superficial e descontextualizada do movimento negro estadunidense. Afirmava-se que aqui não existia racismo. Portanto, o surgimento de uma “consciência negra”, expressa num grupo de origem marxista, que não media as palavras para denunciar o racismo explícito e oculto da sociedade brasileira, era um duplo desafio para a ditadura antirracialista e anticomunista.

Uma das propostas mais ousadas do MNU se deu no bojo do movimento pela Anistia, em 1978. Alguns textos do movimento sugeriam que todos os “presos comuns” negros fossem considerados “presos políticos” e, portanto, anistiados. Obviamente, tratava-se de uma forma exacerbada de provocar a reflexão sobre os motivos da “escolha criminosa” de negros e pardos, dada a falta de oportunidades reais depois de quatro séculos de escravidão. Pouco tempo depois da fundação do MNU, foram organizados “Centros de Luta” em outras capitais (Salvador, Vitória e Porto Alegre).

Em dezembro de 1979, realizou-se o 1º Congresso Nacional do MNU, no Rio de Janeiro, estruturando o movimento nacionalmente e propondo apoio a candidatos em futuras eleições parlamentares. O Programa de Ação do MNU era composto por 16 itens, entre eles, a realização de uma reforma agrária radical, a proteção dos acampamentos dos sem-terra, o direito de sindicalização dos trabalhadores e uma reforma geral do ensino.

No 2º Congresso do MNU, realizado em Belo Horizonte em 1980, a denúncia contra a violência policial e o desemprego foi priorizada nas discussões e linhas de ação. Um dos paradoxos da “abertura” e da “redemocratização” é que a letalidade das polícias militares estaduais aumentou, atingindo sobretudo jovens de periferia, negros e pobres.

Além disso, o MNU encampou as lutas específicas das mulheres negras, duplamente discriminadas, por serem negras e mulheres, numa sociedade racista e machista. A idealização das “raízes africanas”, vistas em seu conjunto sem se preocupar com as etnias ou nacionalidades do continente, o Pan-Africanismo e a necessidade de se conectar com outros movimentos negros ao redor do mundo davam o tom da luta do MNU.

Consciência negra pós-ditadura

O adensamento da “consciência negra” durante o regime militar, bem como a conexão da questão social com a questão racial foram ganhos históricos importantes na luta contra o racismo e pela democratização efetiva da sociedade brasileira. Houve também conquistas simbólicas a partir de então, como a criação do “Dia da Consciência Negra” (20 de novembro). Uma data que propõe uma reflexão sobre o racismo e sobre a igualdade racial, aproveitando da antiga efeméride que comemorava o “Dia de Zumbi”, o líder da revolta do Quilombo de Palmares, no século XVII.

As piadas racistas, muito comuns na cultura brasileira, ainda existem, mas sua presença naturalizada nos espaços públicos encontra cada vez mais resistência. O uso do termo “macaco” para se referir a pessoas negras já foi condenado pela justiça no Brasil, tipificado como crime de racismo. Ainda assim, expressões como “fazer um trabalho de branco” para se referir a um “trabalho mais qualificado” ainda são utilizadas no cotidiano e às vezes passam desapercebidas (especialmente aos brancos). Isso ainda ocorre inclusive dentro de movimentos sociais ou universidades.

Outra conquista importante foi o reconhecimento do Estado pós-ditatorial, em seus diversos níveis federativos, do racismo e da necessidade de políticas públicas efetivas para superá-lo, nas quais os negros sejam protagonistas efetivos ao lado de outros atores comprometidos com essa luta secular. A cristalização de leis antirracistas na Constituição de 1988 também foi um avanço significativo.

Mais recentemente, a criação de “políticas de cotas sociorraciais” em vestibulares de algumas universidades e o reconhecimento do direito territorial dos quilombolas foram marcos importantes no fortalecimento do combate ao racismo, cada vez mais percebido como parte essencial da construção democrática. Trata-se de identificar a dívida histórica da sociedade e do Estado brasileiros perante a população negra, violentada por um sistema escravocrata durante quase quatro séculos. Isso implica em reconhecer que a situação de inferioridade social e econômica desses grupos em nada se deve à sua cor da pele, como insistem os racistas, mas às condições de exploração secular, às humilhações e às violências a que foram submetidos seus ancestrais escravos, base do racismo nas Américas.

Outro avanço é que o negro, no plano das representações culturais, deixou de ser um personagem meramente “folclórico”, em figuras tais como o “alegre sambista”, a “mulata sensual” ou o “jogador de futebol cheio de ginga”. Em filmes e novelas, deixou de ser somente o personagem secundário ou serviçal. As representações e papéis sociais que os negros ocupam têm aos poucos se tornado mais complexos e protagonistas do que alguns anos atrás.

Mas nem por isso se superou a discriminação no dia-a-dia e a desigualdade de origem racial. Longe disso, na verdade. Existem dois opostos hoje em dia: por um lado, o negro é considerado chique para o branco, existem modelos, atrizes lindíssimas, e homens negros também passaram a fazer papel de galã; por outro, a maior parte das vítimas de chacinas e violência policial ainda é de jovens negros. A população negra ainda é mais excluída no campo da educação e do nível de renda do que os brancos. Isto é, entre os pobres os negros ainda são a grande maioria. A violência policial atinge os jovens negros em especial, numa mistura de políticas de segurança pública e de controle social que segue princípios racistas não declarados. A luta contra a violência policial e o extermínio da juventude negra é uma das bandeiras atuais da luta contra o racismo no Brasil. Ainda hoje, em pleno século XXI, essas mazelas ainda desafiam a instável e contraditória democracia política brasileira.

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